Nos hospitais, para além das tarefas diária dos profissionais, onera-os a responsabilidade de acomodarem num espaço restrito um número cada vez maior de idosos abandonados. Providenciar pelo acolhimento destes concidadãos é uma necessidade permanente, consequência da sociedade desumanizada em que vivemos, em que tudo é descartável, até o ser humano.
Nas últimas semanas conheci três senhoras, chamemos-lhes Marias, todas com cerca de 80 anos, todas largadas no hospital por um familiar muito preocupado com a sua boa saúde. Sem indicação para mais cuidados, com alta após a primeira intervenção médica, o preocupado familiar desapareceu.
E assim, sem alternativa, as velhotas lá ficaram, na sua nova morada, questionando os reais motivos que as prendem ali, negando o abandono, procurando refúgio no sono, em macas, embaladas pelo ressonar da Maria do lado.
As Marias são faladoras. Falam das vidas passadas, dos filhos, dos falecidos maridos, dos netos, da vida há 50 anos, dos sacrifícios. Falam dos pais defuntos, de quem cuidaram no fim, sem nunca expor as crias a estas situações que são muito perturbadoras para crianças de 16 anos.
Contam que, apesar de nunca terem ido de férias para a Nazaré ou para Vila do Conde, os filhos sempre tiveram tudo, que estudaram e que têm uma vida boa, até vão de férias para Palma de Maiorca que “é mais barato do que o Algarve”. “A vida está cara doutora.”
Saramago escreveu, na obra Intermitências da Morte, que aceleramos a morte dos nossos idosos quando os internamos e os escondemos da nossa vida. Estas famílias decidiram então acelerar a inevitabilidade com a demonstração do primeiro sinal de morte – a solidão, não fosse a invisibilidade o início do fim.
Estas famílias dir-me-ão, tomadas com razão, que em situação que coloque em causa a vida, a emergência médica actua mais rapidamente no hospital. Dir-me-ão que a nova morada das Marias é um local seguro, onde existem cuidados impossíveis de assegurar no domicílio próprio.
Dir-me-ão que na casa de família passou a ser impossível incluir a velha anciã, que a vida está cara, que é preciso trabalhar, que o apoio é pouco e que a reforma é fraca, apenas dá para a côdea.
Não estar morto não quer forçosamente dizer que se está vivo. Na verdade, jazem nas sepulturas mortos mais vivos do que estas Marias. As Marias são apenas três casos das centenas que se acumulam nos quartos e corredores dos hospitais. Apelar à sensibilidade das famílias, ao dever de prestarem assistência aos seus idosos, tem-se revelado infrutífero, mesmo na quadra natalícia.
Por isso, é urgente conceber mecanismos que permitam retirar estas pessoas dos hospitais. Esses mecanismos não podem ficar-se apenas pela referenciação à rede de cuidados continuados que, a transbordar de pedidos em lista de espera, se transformou num imenso lar repleto de idosos que não precisam de cuidados especializados.
A solução passará, porventura, pela articulação entre o SNS e a Segurança Social, com a criação de lares e o reforço dos serviços de apoio domiciliário. Estes cidadãos têm o direito a viver, a ser acolhidos num espaço adequado, que se assemelhe o mais possível à sua morada de outrora – um lar. Não um hospital.
No hospital, a missão primária é orgânica e, quando esta termina, não existe tempo para mais, porque há mais pessoas para salvar, mesmo quando a salvação já é indiferente para o próprio doente.
No lar, quando alguém tem alta celestial, os companheiros sentem e choram essa despedida, os que lá trabalham também, porque se criaram relações pela convivência diária obrigatória. No hospital é diferente, é cru, é mais do mesmo, é mais uma vaga.
Apelo assim, a quem de direito e dever, que resolva esta situação. As Marias merecem mais, merecem na idade avançada a liberdade pela qual lutaram a vida toda e que agora lhes é retirada nesta prisão, nestas paredes onde a vida passa intermitentemente, somente porque as artroses lhes limitam a marcha.
As Marias merecem dignidade na vida, porque na morte a dignidade é indiferente. Não existem formas dignas de morrer, existem formas dignas de viver.