Bem-vindos à zona de desconforto da série The Curse

Nathan Fielder, Emma Stone, Benny Safdie. O que pode correr mal? Tudo. Reality TV, gentrificação, ética Instagram e casamento numa história incómoda que chega esta sexta-feira à SkyShowtime.

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Nathan Fielder e Emma Stone em The Curse Showtime
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O impacto de Friends é tão duradouro que, no ano da morte de Matthew Perry, a série tem um papel no filme Netflix Deixar o Mundo Para Trás e, indirectamente, na série de Nathan Fielder e Benny Safdie que se estreia esta sexta-feira na SkyShowtime. Indirecto porque não há qualquer menção à série dos seis amigos dos anos 1990/2000, mas The Curse aborda tantos temas – a gentrificação, o casamento, os programas de renovação de casas, o sexo – que sugerimos que a sua premissa reside na famosa frase de apresentação da personagem de Perry: “Olá, sou o Chandler, faço piadas quando estou desconfortável.”

Não se encontra um escrito sobre The Curse que não inclua a palavra “desconforto” ou “incómodo”. Que raio de convite é esse para ver uma série? É dos bons. The Curse é uma criação de dois peritos em surtidas da zona de conforto – deles e dos espectadores , quer na controversa série de comédia semi-documental The Rehearsal, de Nathan Fielder, quer na experiência cinemática de Uncut Gems, co-realizado por Benny e Josh Safdie. E depois, há Emma Stone.

Os grandes olhos de Emma Stone são o esbugalhar do espectador perante The Curse, uma série sobre um casal (Fielder e Stone) que tenta ao máximo acreditar que não padece do “complexo do salvador branco” e que não está nada a contribuir para a gentrificação da povoação de La Española, no Novo México. Os dois são incapazes de chamar as coisas pelos nomes, e portanto a gentrificação é a “g-word” e o seu conceito de reabilitação de casas combinado com filantropia é “Flip-lanthropy”. Um micropénis é um tomate-cereja. Uma casa eco-eficiente é um “lar passivo”. E por aí fora.

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Whitney e Asher estão mesmo a tentar. E é a sua patética tentativa de manter uma relação consigo mesmos, com o mundo que os rodeia e um com o outro que Dougie suga até ao tutano. O sebento produtor interpretado por Benny Safdie não evita conspurcar com umas gotinhas de água falsas a oferta de emprego ao filho de uma mulher com cancro. É só mais um exemplo.

The Curse chegou em Novembro no canal Showtime nos Estados Unidos e foi alvo de uma curiosa recepção: as zonas de desconforto exigem, no ambiente actual, recapitulações semanais, discussões em podcasts e apreciações que, mesmo quando escritas pelos mais convictos dos críticos, protelam o veredicto até ao décimo episódio.

A série tenta ser tantas coisas neste final de um ano louco em Hollywood que acaba por emanar um desespero que transcende a sua transparência temática. Em suma, será que voltaremos a ver algo assim nesta economia em ciclo de centrifugação que tudo encolhe?

“Tentámos convencer-nos a não fazer a série”, disse Safdie ao site IndieWire. “Mas divertimo-nos muito a falar de como poderíamos tornar isto o mais complicado possível.” Amigos desde 2017, Fielder mudou-se para Los Angeles há um punhado de anos e The Curse veio disso. “LA às vezes parece… há qualquer coisa de errado”, descreve. “Ambos nos interessamos pelo que a reality TV diz sobre as pessoas e como conseguimos ver para além dela e chegar à verdade”, completa Safdie. Fielder trabalhou como entrevistador num reality show no Canadá e aprendeu truques que Dougie, a personagem de Benny Safdie, agora usa ao limite. “Foi quase nojento, mas foi tão divertido”, confessa este.

A série de dez episódios tem a assinatura de “um dos autores de TV mais inovadores da última década”, coroa Inkoo Kang na revista New Yorker, e o selo do estúdio independente A24, aquele que ganhou todos os Óscares em todo o lado ao mesmo tempo no início deste ano. Os primeiros cinco capítulos ficam disponíveis a partir de sexta-feira, 5 de Janeiro, e os restantes cinco episódios chegam a 16 de Fevereiro.

A forma como a câmara se move em The Curse descodifica como se faz televisão sobre fazer televisão. Os bem pensantes acham que a programação da vida real está a pedir para ser desconstruída, correndo o risco de fazer ruir um mundo de aparências. Afinal, seja via telemóvel, redes sociais ou quaisquer outras objectivas, estamos (quase) todos sob observação. E pior é que sabemos disso. Se pudesse, Chandler Bing resumiria assim a coisa em 2023: “Cringe”.

Notícia corrigida a 4 de Janeiro: a data de estreia da série é 5 de Janeiro e não 29 de Dezembro como inicialmente noticiado. Aos leitores, as nossas desculpas.

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