Dez temas que marcaram 2023: do novo/velho conflito no Médio Oriente à crise no Governo
Não houve pandemia ou eleições, mas houve uma nova guerra e uma maioria absoluta que chegou ao fim.
O ano surpreendeu-nos com crises atrás de crises, começando pela invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília, logo no início de Janeiro. Seguiu-se uma crise habitacional sem precedentes; problemas nas urgências; e, para acabar o ano em cheio, marcação de legislativas antecipadas. 2023 não foi só o ano em que caiu um Governo em Portugal — também caiu o Governo regional dos Açores.
Tudo se prepara para que 2024 seja um ano de grandes desafios.
Crise política: uma viagem inesperada
Podia escrever-se todo um dossier sobre a crise política que este ano atingiu Portugal e que não constava em nenhuma projecção feita em 2022. O ano começou agitado, com a nomeação de João Galamba para o lugar de Pedro Nuno Santos (que se demitiu na sequência da indemnização a Alexandra Reis, ex-gestora da TAP), e a agitação não acalmou com o passar dos meses.
A maioria absoluta trouxe consigo tantos “casos e casinhos”, que, no tempo em que durou, deu origem a mais de 15 exonerações de ministros e secretários de Estado. Terminou com a demissão mais inesperada e importante de todas, a 7 de Novembro: a do primeiro-ministro António Costa, que pediu para sair depois de ver o seu nome arrastado para um parágrafo de um comunicado da Procuradoria-Geral da República sobre a Operação Influencer.
Esta investigação judicial tem como alvo os negócios do data center de Sines, do lítio e do hidrogénio verde e levou a polícia à residência oficial do primeiro-ministro, mais precisamente à sala de trabalho do seu antigo chefe de gabinete, Vítor Escária (onde foram encontrados mais de 75 mil euros em dinheiro). No centro do processo estão alegadas pressões para concretizar e facilitar negócios. Diogo Lacerda Machado (amigo do primeiro-ministro) é outro dos envolvidos. Tal como Escária e Lacerda Machado (que chegaram a ficar detidos), o ministro João Galamba é um dos nove arguidos neste caso.
Marcelo Rebelo de Sousa aceitou a demissão e fez saber que marcaria eleições legislativas antecipadas para o dia 10 de Março, permitindo, porém, que o Parlamento aprovasse o Orçamento do Estado para o ano (e para o Governo) seguinte.
Pelo meio de toda esta viagem inesperada que foi 2023 houve ainda uma comissão de inquérito à tutela política da gestão da TAP, que, ao longo de 168 horas de audições, também se debruçou sobre supostas agressões no ministério das Infra-Estruturas. A esta distância, os três meses que durou a comissão de inquérito e as polémicas que criou parecem um mero acidente de percurso. Sónia Sapage
O ano em que a Igreja foi "estrela" nos media
Seria preciso recuar muitas folhas no calendário para encontrar um ano em que a Igreja Católica tenha monopolizado tantas páginas de jornais e tanto tempo de antena nas televisões como em 2023. Da violência do relatório que desocultou a dimensão dos abusos sexuais de menores em meio eclesial à efusividade colectiva que pontuou a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) decorreu apenas um par de meses, que foram, porém, bastantes para condensar e trazer para a actualidade noticiosa o que a instituição tem de melhor e de pior.
O ano começou com a revelação, logo no dia 12 de Fevereiro, de que pelo menos 4815 menores terão sido vítimas de abuso sexual no seio da Igreja, entre 1950 e a actualidade, numa estimativa feita a partir dos 512 testemunhos validados pela equipa coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht. Entre os agressores, havia uma maioria de padres. E, apesar de não dever ser surpresa para ninguém, a violência das descrições sobre os abusos (nos seminários, nos confessionários, em casa dos padres…) evidenciou com uma clareza inquestionável a concupiscência e a impunidade que, ao longo de décadas, grassaram entre os membros da Igreja, sob o beneplácito dos bispos e demais superiores hierárquicos, cujos esforços se esgotaram, ao longo de demasiadas décadas, na tarefa de ocultar os crimes e proteger a imagem pública da instituição.
Nos meses seguintes, do interior da Igreja, ouviram-se exercícios públicos de autoflagelação, desastrados pedidos de desculpas, tentativas torpes de retirar importância ao que se passou. Tudo contribuiu para mostrar que a Igreja não tinha sequer um léxico preparado para se referir a essa realidade, quanto mais para prontamente responder à necessidade de reparação das vítimas.
Apesar disso, a voz do exército de indignados não tardou muito a ser substituída na agenda mediática pela preparação da JMJ, que traria o Papa Francisco ao país durante uma semana (ele não esqueceu o tema dos abusos e reuniu-se com algumas vítimas), numa experiência que o antropólogo Alfredo Teixeira descreveu como exemplo máximo da “emocionalização da experiência religiosa”.
Apesar dos milhões gastos — ainda se lembram da polémica em torno dos cinco milhões do altar-palco? —, e da congregação de um universo de católicos cuja alegria e juventude surpreendeu muita gente, não é de crer que, num país de católicos ma non troppo como é o nosso, o evento tenha bastado para contrariar o crescente desapego face a uma instituição que só nos meses mais recentes pareceu ter acelerado um pouco o passo no processo de deixar para trás teimosias esclerosadas como, por exemplo, as que impõem a castidade aos padres e impedem a ordenação de mulheres e homens casados. Natália Faria
O ano em que os juros chegaram aos 4%
Com Portugal e a zona euro a entrarem em 2023 em plena crise inflacionista, o ano estava destinado a ficar marcado pela continuação da subida das taxas de juros e pelo consequente sentimento em muitos portugueses do agravamento muito significativo do custo de vida. O BCE não defraudou as expectativas.
Reunião após reunião, todos se habituaram a ver Christine Lagarde, a presidente do Banco Central Europeu, a anunciar mais uma subida das taxas de juro. E a verem, pouco tempo depois, a sua prestação de crédito a tornar-se mais elevada. No seguimento de um movimento iniciado em Julho de 2022, o BCE subiu mais seis vezes a taxa de juro em 2023, parando apenas em Setembro, depois de a posicionar nos 4%.
Para as famílias e empresas com empréstimos indexados à Euribor, isto significou um agravamento das prestações que, num cenário de subida ainda rápida dos preços, lhes foi criando dificuldades crescentes na gestão do seu orçamento. É verdade que, em média, os salários também aumentaram, mas o efeito negativo nos bolsos e na confiança dos portugueses ficou evidente na forma como o consumo privado deixou de crescer a partir do segundo trimestre deste ano, lançando a economia para uma estagnação que ainda persiste.
Entre as empresas, o aumento dos custos de financiamento tornou mais difícil a realização de investimentos, e, para o Estado, 2023 foi o ano em que as despesas com juros voltaram a subir.
Nos últimos meses do ano, a inflação, tanto em Portugal como na zona euro, recuou de forma mais rápida do que o previsto e isto permite que, entre os responsáveis do BCE, a ideia de novas subidas de taxas de juro esteja para já afastada, existindo mesmo a expectativa de que, dentro de alguns meses, se possa iniciar uma descida.
Ainda assim, o efeito negativo da subida das taxas de juro realizada em 2023 está cá para ficar. E, apesar da confiança do Governo e dos bancos centrais num cenário de aterragem suave da economia, não pode ser descartada a possibilidade de uma recessão técnica em Portugal, seja no final de 2023, seja no início do próximo ano. Sérgio Aníbal
O impasse trágico na Ucrânia
Impasse. Essa foi a palavra maldita que assombrou a Ucrânia ao longo dos últimos meses. No terreno, a muito aguardada contra-ofensiva não alcançou o objectivo primordial de cortar o corredor terrestre entre a Crimeia e os territórios ocupados pela Rússia no sudeste do país. Hoje percebe-se que as expectativas eram demasiado elevadas. Depois de consolidar o seu controlo sobre as regiões ocupadas no ano passado, as forças russas ergueram um sistema defensivo ao longo da linha da frente com pouco paralelo em conflitos recentes. Enormes campos minados e uma rede extensa de drones tornaram praticamente impossível uma penetração pelas forças ucranianas sem que isso implicasse um banho de sangue.
E houve vários. Bakhmut, Robotine e Avdiivka foram sinónimo de longas batalhas com baixas elevadíssimas entre os dois lados. Na Ucrânia, com uma população três vezes menor do que a da Rússia, a falta de homens e mulheres na linha da frente ameaça comprometer o esforço de guerra.
O impasse também se estendeu às relações da Ucrânia com os seus principais parceiros internacionais. Em Washington, republicanos e democratas não se entenderam no Congresso para garantir financiamento adicional, ao mesmo tempo que a Casa Branca alerta para a exaustão do seu arsenal de munições e armamento.
Na Europa, os sinais foram mistos. O Conselho Europeu driblou a oposição da Hungria e abriu caminho à abertura das negociações formais para a adesão da Ucrânia à União Europeia, mas não conseguiu garantir 50 mil milhões de euros em financiamento.
Sem nenhum progresso relevante na Ucrânia, a Rússia teve sucesso na sua estratégia de desgastar as forças ucranianas numa guerra dura e sangrenta, prolongando o máximo de tempo possível o conflito na expectativa de um esgotamento do apoio ocidental. Ironicamente, o maior perigo para o Kremlin foi interno, com a rebelião do Grupo Wagner, em Junho. A audácia de Yevgeny Prigozhin expôs as fissuras internas de um regime aparentemente coeso, que acabaram por ser resolvidas num aparatoso e conveniente acidente aéreo, dois meses depois do motim falhado. João Ruela Ribeiro
Médio Oriente: e, de repente, tudo voltou a ser sobre Israel e a Palestina
Se o ano arrancou sob o signo da diplomacia, com o corrupio de viagens entre capitais a atingir o pico definitivo com o Acordo de Pequim, entre o Irão e a Arábia Saudita, em Março, 2023 termina em afã de telefonemas. “Impedir que a guerra entre Israel e Gaza se amplie parece ser a principal prioridade actual dos líderes mundiais”, disse ao PÚBLICO Steven Wright, professor de Relações Internacionais no Qatar.
Ninguém esperava, mas no Médio Oriente tudo voltou a girar em torno do conflito israelo-palestiniano. O 7 de Outubro — dia em que o Hamas atacou Israel e matou indiscriminadamente 1200 pessoas, desencadeando a feroz operação militar de Israel contra a Faixa de Gaza, que já ultrapassou os 20 mil mortos — pôs o Médio Oriente em suspenso, com os seus líderes dispostos a tudo para não permitir que Gaza transborde.
Internamente, Israel viu ruir décadas de políticas baseadas na doutrina de Benjamin Netanyahu. Por um lado, a ideia de que a ameaça podia ser contida desde que se mantivesse o inimigo desunido (sem força ou legitimidade política); por outro, a fórmula “paz pela paz”, em que Israel não precisa de desistir de territórios ocupados para alcançar a paz com países árabes e que parecia ter sido provada com os Acordos de Abraão.
Há nove meses, a reaproximação histórica da monarquia sunita guardiã dos locais sagrados do islão com o maior país xiita pôs os analistas a questionar se estavam a assistir ao “início oficial da era pós-americana no Médio Oriente” (Anthony Samrani, L'Orient-Le Jour). Não estavam. Hoje, acabou-se o descanso, os EUA estão de regresso e em força, pressionados como nunca a travar a violência israelita face “à dimensão sem precedentes, e insuportável de testemunhar, da morte e da destruição em Gaza”, nas palavras do coordenador especial da ONU para o processo de paz, Tor Wennesland.
Afinal, o caminho para a estabilidade não passa por Riad, Abu Dhabi ou Teerão. Passa mesmo, hoje e sempre, por Jerusalém. Sofia Lorena
Urgências aqueceram debate político
Os portugueses são dos europeus que mais recorrem às urgências. Dizem-no o ministro da Saúde e o director executivo do SNS, reconhecem-no os médicos e comprovam-no os dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), no último relatório Health at a Glance 2023: mais de 63 consultas de urgência por cada cem pessoas, contra uma média de 27 consultas.
As urgências aqueceram o debate político durante o ano. Os problemas tornaram-se mais visíveis em ginecologia/obstetrícia ainda antes do final de 2022, quando, por altura do Natal e do Ano Novo — e já depois de vários encerramentos em vários pontos do país —, a Direcção Executiva do SNS (DE-SNS) decidiu elaborar um plano de encerramentos rotativos que deveria ser temporário.
Não foi. O esquema, anunciado para garantir “segurança e previsibilidade” a utentes e profissionais de saúde, alastrou-se às urgências pediátricas. Criaram-se mapas para os utentes saberem o que estava ou não aberto e o INEM e os bombeiros transportaram utentes para outros hospitais com mais capacidade no momento. Uma mensagem sobressaiu do lado do Governo e da DE-SNS: em caso de doença, ligar antes para a Linha SNS24 (808 242 424) ou para o INEM, em caso de emergência.
O efeito da falta de médicos em número suficiente para fazer escalas estendeu-se às urgências gerais, quando em Outubro se começou a sentir, com maior intensidade, o efeito da entrega de minutas para a não realização de mais horas extraordinárias além das 150 horas anuais exigidas por lei. Nas últimas semanas, o número de urgências com constrangimentos tem sido sempre superior a 30.
Na Assembleia da República entraram requerimentos sobre as urgências e em plenários discutiu-se o estado da saúde. Às críticas da oposição, o Ministério da Saúde respondeu que, apesar das limitações, o SNS tem conseguido dar resposta em rede. Em Janeiro, os médicos voltam a ter disponíveis 150 horas extraordinárias para fazer e a crise das urgências poderá aliviar.
Mas sem mudanças de fundo será de esperar que a história dos últimos anos se repita: períodos de maior pressão e longas horas de espera. Recentemente, a DE-SNS colocou em consulta pública uma proposta que pretende tirar das urgências os casos classificados pela triagem de Manchester como pouco graves (pulseiras verdes e azuis). A medida tem potencial para manter na ordem do dia o debate político sobre as urgências. Até Outubro, realizaram-se 5,1 milhões de episódios de urgência. Ana Maia
O ano do ChatGPT, um fala-barato digital que pôs a IA na boca do mundo
Muito se fala do ChatGPT. E muito se falou nos últimos 12 meses. No que toca a tecnologia, 2023 foi o ano do chatbot da OpenAI – a startup norte-americana mostrou que era possível criar um programa que usa inteligência artificial (IA) para perceber os pedidos de seres humanos e responder em contexto de conversa. Fossem pedidos de ajuda para escolher o pequeno-almoço, fazer o trabalho de casa, escrever poemas ou reflectir sobre o sentido da vida. A 1 de Janeiro, o ChatGPT era o primeiro do seu tipo.
Com os meses, o chatbot tornou-se sinónimo de IA generativa, a tecnologia que permite produzir conteúdo original a partir da análise de grandes quantidades de dados. Há anos que várias tecnológicas caminhavam para a mesma meta. Este é um dos motivos para a OpenAI ter lançado o seu chatbot no final de 2022, em vez de no final de 2023, como estava inicialmente previsto.
A base do ChatGPT são os transformers (transformadores), modelos linguísticos apresentados por investigadores da Google em 2017 para encontrar padrões em sequências de dados. É o que permite que programas informáticos saibam qual é a melhor palavra para continuar uma frase, completar uma imagem ou resolver uma equação.
O ChatGPT de Novembro de 2022 era uma versão experimental, criada com a missão de demonstrar a tecnologia e perceber o que tinha de ser corrigido. O sistema nem incluía informação actualizada, limitando-se a dados recolhidos até ao final de 2021. Ou seja, ignorava por completo eventos como o começo da guerra na Ucrânia. Isso não o impedia, no entanto, de discursar sobre tudo a pedido (de forma mais ou menos factual). Tornando-se um autêntico fala-barato digital.
Conversas maiores motivavam facilmente episódios de alucinação, um fenómeno que acontece quando os sistemas de IA generativa produzem resultados que podem parecer plausíveis, mas que são factualmente incorrectos ou saem do contexto. O detalhe não travou o interesse global no chatbot da OpenAI nem os esforços de várias gigantes tecnológicas para lançar os seus próprios chatbots.
A primeira a fazê-lo foi a Microsoft, que investe há anos na OpenAI. Seguiram-se as versões de empresas como a Alibaba, a Google e, mais recentemente, o X (antigo Twitter). Muitas incluem hiperligações para a origem da informação ou criam imagens detalhadas a pedido. A OpenAI também lançou uma versão melhorada e paga do ChatGPT.
A explosão de chatbots de todo o mundo não tardou a motivar preocupações relacionadas com a capacidade de a tecnologia aumentar esquemas de desinformação online e de engenharia social (phishing) para roubar dados e dinheiro. Ou receios sobre o futuro do emprego e sobre o efeito que as ferramentas têm em pessoas vulneráveis que podem confundir os programas com seres humanos reais.
A realidade motivou debates sobre novas leis em vários países. Se há uma coisa em que legisladores e políticos dos EUA, China e União Europeia concordam é que é necessário controlar a proliferação global de novos sistemas criados para simular o saber humano. Os legisladores europeus, que estavam mais adiantados, foram obrigados a rever o projecto-lei para a IA que devia estar concluído na primeira metade do ano. Em Dezembro, ainda não foi votado, mas já há um texto final que define novas obrigações de transparência para os grandes modelos de linguagem.
As regras devem facilitar o desenvolvimento de tecnologia responsável, usada para acelerar a investigação científica e tecnológica. Os medos, porém, persistem com as Nações Unidas a reunir um grupo de peritos para criar uma agência que regule a inteligência artificial, como já acontece com a energia atómica.
Por ora, uma coisa é certa: o ChatGPT já não é o único do seu tipo. Karla Pequenino
O avanço da direita radical
Uma série de vitórias da direita radical em 2023 trouxe de novo o tema de, quando confrontados com o original ou a cópia, os eleitores tenderem a preferir o original.
A frase de Jean-Marie Le Pen é antiga, no entanto, continua a ser aplicável à direita conservadora em vários países, seja o tema a imigração nos Países Baixos ou o custo da descarbonização na Alemanha. Os conservadores radicalizam-se, e quem ganha são os radicais.
A posição da direita conservadora foi um dos factores que influenciaram a vitória do partido de Geert Wilders nos Países Baixos, ainda que não consiga governar, e também a vitória de Javier Milei, agora Presidente da Argentina.
Os conservadores ajudaram não só na escolha dos temas, mas também com a sua resposta à possibilidade de governar com a direita radical: se o tema das eleições for a capacidade de esta governar, ela ganha, comentou o especialista Cas Mudde.
No entanto, a subida da direita radical e extrema está longe de ser uma tendência na Europa, ou um dado adquirido, como mostraram as eleições também neste ano em Espanha (em que o Vox teve um resultado pior do que o previsto) ou na Polónia (em que o partido Lei e Justiça perdeu as eleições mesmo num campo muito desigual a seu favor).
Poderá já não fazer sentido falar nos anticorpos das democracias liberais para as propostas antidemocráticas destes partidos, como enuncia Valerio Alfonso Bruno, mas vale a pena olhar para a Polónia como o caso de saída do poder de um partido que foi destruindo o Estado de direito mas que acabou derrotado nas urnas.
Para reverter as medidas antidemocráticas do executivo do PiS, por exemplo, para devolver à TV pública um estatuto neutro, o actual Governo agiu no limite da legalidade.
Se não havia muitas alternativas a esta linha de acção, o desafio vai ser se o Governo a deixará circunscrita à reversão das medidas antidemocráticas do PiS, ou se será tentado a repeti-la. Ou seja, que capacidade terá a democracia de voltar ao normal após uma passagem prolongada pelo Governo de um partido deste tipo. Maria João Guimarães
A barbárie antes da normalidade no Brasil
A tomada de posse de Lula da Silva, a 1 de Janeiro do ano passado, teve um nível de protecção inédito. As autoridades estavam sob alerta máximo para potenciais tentativas de perturbação violenta da cerimónia por parte de apoiantes do ex-Presidente Jair Bolsonaro, empenhados em não reconhecer a legitimidade do chefe de Estado eleito em Outubro. Uma semana antes, um homem tinha sido detido por estar a planear fazer explodir um camião no aeroporto de Brasília. Quando a cerimónia acabou sem que fossem registados incidentes relevantes, todos suspiraram de alívio. A sensação era de que, a partir de agora, havia espaço para o regresso da normalidade política ao Brasil e à sua capital federal.
Mas eis que, exactamente uma semana depois, numa tarde de domingo calma no pico do Verão do Hemisfério Sul, a fúria dos derrotados se abate sobre os símbolos da democracia brasileira. Centenas de apoiantes de Bolsonaro, muitos vestidos com as icónicas camisolas verdes e amarelas da selecção de futebol, invadiram os edifícios do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, destruindo tudo o que encontravam pelo caminho.
O ataque inédito ao coração da capital federal brasileira foi comparado à invasão do Capitólio, em Washington, um ano antes, incentivada por Donald Trump. No entanto, os meses que se seguiram à invasão de Brasília foram de grande retracção do bolsonarismo como movimento político viável. Bolsonaro perdeu os seus direitos políticos num caso judicial não relacionado com o 8 de Janeiro e tem uma futura recandidatura vedada. Uma comissão parlamentar de inquérito sobre o ataque de Brasília concluiu que o ex-Presidente foi um dos autores morais dos incidentes, complicando ainda mais a enorme malha de casos que envolvem o seu nome.
Por outro lado, não parece existir hoje um herdeiro convincente da linha dura bolsonarista ou sequer dos métodos que o ex-Presidente utilizou e que testaram as bases da democracia brasileira. A normalidade regressou, mesmo que com um ligeiro atraso. João Ruela Ribeiro
2023: o "colapso climático" está aqui
A 17 de Novembro ocorreu algo inédito. Pela primeira vez desde que há registos, a temperatura à superfície da Terra atingiu dois graus Celsius acima da média pré-industrial, mais precisamente 2,07 graus, segundo o Serviço de Alterações Climáticas do programa Copérnico (C3S), da União Europeia. O fenómeno é representativo de um ano que, ao que tudo indica, se irá tornar o mais quente de sempre – 1,46 graus acima da média, de acordo com a estimativa feita para os primeiros 11 meses.
Até agora, o ano mais quente de sempre tinha sido 2016, que, tal como 1998 e, agora, 2023, foi um ano de El Niño – o fenómeno de águas anormalmente quentes do Pacífico que ajuda a empurrar as temperaturas para cima. Mas nada disto seria possível sem o contínuo crescendo da concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera, responsável pelas alterações climáticas e pelo aquecimento global, que alimentou incêndios devastadores em lugares como o Canadá, a Grécia e o Havai, onde morreram mais de 100 pessoas, e enormes inundações na China e na República Democrática do Congo, onde morreram mais de 400 pessoas, além de mais uma temporada de seca na Amazónia.
Foram tantos os episódios extremos de 2023 ligados ao clima que é difícil lembrar todos, mas recordes como o das temperaturas da superfície dos oceanos, ao longo de meses, e o da área mínima de gelo marinho da Antárctida somam-se às evidências de como a realidade física do nosso planeta está em mudança, rumo a um futuro incerto. “O colapso climático já começou”, disse António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, em Setembro, apontando para o que muitas populações ao redor do globo estão a viver na pele.
No entanto, num relatório de Dezembro do Global Carbon Budget estima-se que 2023 será o ano com mais dióxido de carbono (CO2) emitido: 40.900 milhões de toneladas. O CO2 é o principal gás responsável pelo efeito de estufa, lançado na queima de combustíveis fósseis, que os ambientalistas estão há décadas a exigir que se reduza. Que 2023 seja marcado pelos dois recordes, de temperatura e de emissões de CO2, revela a contradição em que a humanidade se encontra, até ver irresolúvel. Nicolau Ferreira