Afinal, o Natal não é para todos

A solução não é ter quatro trabalhadores trombudos a levantarem-me da cadeira de rodas para poder entrar na loja ou um empregado a mostrar-me à porta as peças.

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Megafone P3: Afinal, o Natal não é para todos Sergio Azenha
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Cresci com a velha máxima de que “o Natal é para todos” e tenho pensado que, cada vez mais, isto não é bem verdade. No mínimo, não o Natal que nós criámos.

O meu Natal nunca foi propriamente à base de consumismo. Sou católico e cresci numa família gigante com as portas escancaradas para quem se quiser juntar. Contudo, adoro dar presentes.

Gosto da adrenalina de pensar no outro de maneira a surpreender e a dar aquilo que não é óbvio mas que mais nos diz face à nossa relação ou que alguém nem se lembrava que precisava.

Desde pequeno que me ensinaram que o Natal não deveria conhecer as diferenças sociais de maneira alguma e, para confirmar tal coisa, surgiram tantos e belos projectos que combatem o abandono nos lares, nas casas de acolhimento de crianças e jovens ou até coisas simples como o cantar de serenatas nos hospitais.

No entanto, há problemas mais simples e que são importantes na sua medida. Nos últimos quatro anos tem-se tornado cada vez mais difícil poder oferecer presentes. Demoro mais tempo a pensar onde é que posso ir às compras do que a decidir o que é que vou comprar.

Graças à cadeira de rodas ou scooter de mobilidade — aliás, não é graças a estas últimas, mas devido à falta de acessibilidade a autonomia que poderia ter ardeu como um fósforo.

Nas ruas não há rampas para as lojas e, quando confrontadas com esse problema, desculpam-se dizendo que a culpa é da câmara municipal e curiosamente a câmara diz que os responsáveis são os donos das lojas. Quem é que fica no meio da discussão sem solução? Os chamados “coitados das rodinhas” que mais vale fazerem as compras num centro comercial que tem elevador.

Vamos então aos centros comerciais, esses grandes deuses que protegem a classe da mobilidade reduzida. Contam-se pelos dedos de uma mão quais são as lojas que têm corredores feitos a pensar que uma cadeira de rodas poderá circular por lá.

Por norma, só tenho direito a ver a montra e se chegar à caixa já é uma sorte. Sortudos somos nós que nos despachamos do dito inferno das compras de Natal depressa, muitas vezes frustrados porque tentamos contornar o possível, mas acabamos por ir contra um mostrador, sob os olhares lancinantes dos clientes em volta. Para não falar da falta de civismo de reconhecer o atendimento prioritário, tanto por parte dos trabalhadores como dos consumidores. Cenário idílico este, não é?

Em vez de se poder ver as luzes da cidade enquanto se compra algo no Chiado, só posso ver a luz do meu computador porque, por enquanto, aí não há sinais de que estar de cadeira de rodas cause distinção entre compradores.

Confesso que sei que isto não é o mais importante do Natal, naturalmente. Mas é menos um direito que temos enquanto grupo nestas condições e nem toda a gente tem a sorte de ter o meu Natal.

E não, a solução não é ter quatro trabalhadores trombudos a levantarem-me para poder chegar a terreno lojista nem um empregado simpático a mostrar-me à porta as peças que vou mirando lá do fundo com os meus binóculos. Ninguém se sente bem a viver isto em cinco, dez, 20 lojas diferentes.

A acessibilidade é o acesso igual aos diferentes sítios sem montar um itinerário mais detalhado do que o do Senhor Presidente da República numa visita de Estado e sem ter de avisar o país inteiro de que vou àquela loja. Trata-se de um investimento de umas dezenas de euros numa rampa simples de madeira ou em corredores que permitam a circulação de qualquer um, a qualquer hora.

Um Santo Natal, que agora vou ter de ir à loja que não existe online e onde me responderam, aquando da necessidade de rampa para entrar: “Pode voltar daqui a 45 minutos? É que eu acho que temos uma dessas de madeira, mas só a gerente da loja é que sabe onde é que ela está escondida”. O problema é que esta resposta é real.

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