Seis livros para reler José Tolentino Mendonça
Iniciada em 1990 com Os Dias Contados, a obra literária do Prémio Pessoa 2023 é sobretudo de natureza poética, embora também se exercite no domínio do ensaísmo. Eis algumas portas de entrada.
José Tolentino Mendonça tornou-se esta manhã o 37.º galardoado com o Prémio Pessoa, sucedendo, no palmarés desta iniciativa do semanário Expresso com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos, a outro poeta, José Luís Barreto Guimarães. Embora o júri tenha atribuído a escolha a razões não exclusivamente literárias (“Além das suas funções eclesiásticas e pastorais, José Tolentino Mendonça tem-se destacado no ensino universitário, no ensaio de reflexão teológica filosófica e na poesia”, considerou), enfatizou o modo como a sua "intensa e extensa" obra poética é um testemunho da "força espiritual da literatura". Eis alguns livros fundamentais para a revisitar, ou para ficar a conhecê-la.
A Noite Abre Meus Olhos
Assírio & Alvim, 2021
Publicada em 2021, a edição revista deste volume acrescenta alguns poemas à poesia reunida de José Tolentino Mendonça. “É quando o texto se reconhece como cicatriz, a palavra como ruína, o verso como queda e cinza, que nasce a poesia. A arte é o saber-se derrota: um ‘sair de escuridão em escuridão’, o chegar sempre tarde demais, quando a morte já fez o seu trabalho ou está iminente", escreve a propósito desta obra a académica italiana Teresa Bartolomei. A selecção dá maior expressão aos primeiros livros do poeta, à sua relação com a ilha (nasceu na Madeira) e às dicotomias ou contradições de um espírito então mais abertamente desassossegado. O amor, a solidão, Deus, o lugar, a atenção ao mundo na sua ambivalência, são algumas das linhas de força.
A Papoila e o Monge
Assírio & Alvim, 2013
Tem como génese uma viagem do poeta por várias cidades do Japão e junta essa experiência à tradição do haiku, à cultura de Jack Kerouac e à de Bashô, como refere o autor. A vida monástica, o silêncio, a montanha, a cidade são os grandes temas de uma busca de espiritualidade alicerçada na deslocação e/ou na paisagem. “Quando se extinguiu/ o vermelho da papoila/ o jardim ficou vazio”, lê-se numa das quatro partes em que se divide o volume que começa com Escola do Silêncio: "O Silêncio só raramente é vazio/ diz alguma coisa/ diz o que não é.”
Teoria da Fronteira
Assírio & Alvim, 2017
A epígrafe da intelectual Gloria Anzaldua, uma norte-americana de ascendência mexicana, sinaliza uma espécie de intenção que o autor pretende para o o livro que ali se inicia: “Penso na fronteira como o único ponto da Terra que contém todos os outros lugares dentro de si.” Dividido em três partes, atenta na diversidade do mundo e nas experiências que advêm dessa observação apurada. Numa crítica publicada em 2018 neste jornal, Maria da Conceição Caleiro considerou-o o mais político dos livros de Tolentino Mendonça. Mas é também um dos mais visionários, pelo que convoca: uma mundivisão alargada com momentos de luz e de escuridão.
A Construção de Jesus
Paulinas Editora, 2015
Estamos no campo do ensaio, um dos mais cultivados, a par da poesia, por Tolentino Mendonça. Neste texto, o autor parte dos evangelhos para indagar acerca da importância da narrativa para a construção da memória colectiva. O centro é a figura de Jesus e todas as histórias geradas à sua volta, sob múltiplas perspectivas, e como ela se tornou unificadora de uma religião ou de um culto. A partir dessa personagem, apela-se a uma releitura ou reinterpretação dos textos bíblicos.
O Hipopótamo de Deus e Outros Textos
Assírio & Alvim, 2010
“Por bizarro que possa parecer, tornou-se muito raro ouvir falar da identidade ou da função do padre na Igreja Católica sem lhe associar imediatamente a palavra crise”, lê-se num dos textos breves que compõem este livro onde José Tolentino Mendonça reflecte sobre alguns temas ligados ao catolicismo. Da chamada crise de vocações à interpretação dos evangelhos, aplica a linguagem poética ao pensamento sobre a religião e o lugar do homem nesse mundo governado por um deus ou uma ideia de deus enquanto potência criativa ou de dúvida, e explora a relação dessa ideia com a instituição Igreja.
As Estratégias do Desejo
Cotovia, 2003
Inicialmente publicado em 1994, este livro viria a ser acrescentado de um terceiro ensaio. Cada um dos três textos reflecte sobre o modo como o corpo e a sexualidade são tratados nos textos bíblicos. O tema é, aliás, bastante explorado em muita da poesia inicial de José Tolentino Mendonça. Neste volume, trata também do modo como a literatura se foi alimentando ao longo dos séculos dessas narrativas. Desde Blake a Stendhal ou a David Mourão-Ferreira. Escreve: “A primeira constatação a fazer é que o ‘texto bíblico’ tornou profano o domínio da sexualidade.”