A história da apanha do sargaço à espera de um novo capítulo
O Museu do Sargaço de Apúlia, aberto este ano, não quer apenas contar a história de uma cultura que mudou a paisagem desta orla costeira. Quer dar-lhe continuidade.
Sargaaaaço! Imaginamos o grito exclamado de uma forma pausada, alegre e entusiasmada nos dias em que o mar arrastava até à costa o sargaço em grandes quantidades, dando à praia a abundância de algas. Assim se anunciava a mareada, um acontecimento. "E toda a gente ia", conta Manuel João Neiva. "Era quase um culto. As pessoas cantavam enquanto esperavam pelo momento certo de ir."
Dificilmente ouviremos alguma vez o alerta gritado como deve ser gritado e seguido de um rebuliço de apetrechos e de pés descalços a galgar as dunas e as ondas, de branquetas abotoadas à pressa, galhapão e gravetas em riste, o sargaço à mercê.
A história de Apúlia, e dos lugares de Cedovém e Pedrinhas, confundem-se, consta que desde a Idade Média, com a actividade da pesca do pilado e com a apanha do sargaço, do argaço ou moliço, o conjunto de algas com "propriedades mágicas" que dão à beira-mar e que fizeram a cultura de um povo. "As pessoas desta região litoral, que se estende entre Póvoa de Varzim e Viana do Castelo, descobriram que se fossem buscar estas algas, se as secassem e usassem em terrenos arenosos pouco férteis à beira-mar, conseguiam torná-los cultiváveis. Em torno desse simples gesto, dessa semente, desenvolveu-se uma forma de estar, de viver e de respirar, desenvolveu-se a cultura do sargaço que assenta em pilares como um conjunto de trajes, de utensílios, de embarcações, diferentes tipologias de campos de cultivo e de abrigos", explica à Fugas Manuel João Neiva, técnico do Museu Municipal de Esposende e um dos entusiasmados criadores do Museu do Sargaço, pousado no "epicentro" da apanha do sargaço na região. "Fazia sentido que o museu fosse aqui."
Começou antes da pandemia a ideia (partiu de Ivone Batista de Magalhães, arqueóloga e conservadora do Museu Municipal) de transformar a escola primária de Apúlia num equipamento capaz de "conservar" esta cultura, de mostrar o passado — através de objectos, textos e fotografias de quem por cá passou pela metade do século XX (casos dos registos do arquitecto António Menéres e do fotógrafo Artur Pastor) —, mas também de apontar direcções no futuro, tendo em conta premissas de sustentabilidade e de economia verde. "A cultura de um povo passa por colocar uma semente pequenina que regamos e que dá origem a um tronco, galhos, folhas, flor e frutos. Começa-se a desenvolver uma árvore grande."
Se no passado, numa altura em que 80% da população portuguesa vivia da agricultura de subsistência, o sargaço era usado pelo sector primário, hoje o município assume o desafio de dar novas vestes aos montes de algas, que ainda povoam os areais e que são arrastados por tractores para os campos da costa mais ou menos entre os meses de Março e de Setembro. "Já nos anos de 1950", aponta Manuel João Neiva, "alguns apulienses seleccionavam algumas espécies para exportar". Trata-se de um produto "orgânico, não animal" e "sustentável" que pode dar origem a uma indústria com os mesmos atributos. "Cultura não é uma coisa metida numa vitrina, mas algo com continuidade. Sejam empreendedores! Tenham ideias! Sejam ousados! Isto não é para ficar na praia a apodrecer. Dêem-lhe uso!"
"Cultura é uma identidade em evolução"
Os tempos são outros. O território em questão, uma orla litoral de cerca de 16 quilómetros, integra hoje a Rede Natura 2000, está sujeito ao instrumento de gestão do litoral (graças ao Programa da Orla Costeira) e encontra-se classificada como Parque Natural do Litoral Norte. Por toda esta linha de costa é possível detectar sinais mais ou menos visíveis da cultura do sargaço que ao longo dos tempos foi alterando a paisagem, permitindo inventar os campos masseira, protegendo as culturas do vento e enriquecendo a terra pobre e arenosa com adubos ricos, vindos do mar, e fixar nas dunas abrigos, barracos e cabanas para guardar os apetrechos e para pernoitar, caso fosse necessário — exemplos de arquitectura primitiva ou vernácula que hoje são autênticos pontos turísticos de Esposende, as chamadas casas-barco devido à forma arquitectónica com que foram construídas, semelhante à de um barco, que ali encaixava.
Resistem muitas dessas construções rudimentares. Foi desaparecendo o sargaço armazenado em camadas, em serras. Foram-se perdendo as expressões e os utensílios — com o tempo, o comércio do peixe superou o do sargaço — e foram-se alterando os processos da recolha a pé do sargaço que o mar atira à terra e que se fazia à força braçal apoiada por ancinhos e redes como o galhapão (ou "ganha pão", um saco de rede de fio de sisal grosso e de malha larga, normalmente com dois metros e vinte centímetros de comprido, preso a um arco de meia-volta, de madeira de loureiro, carvalho ou salgueiro), o foucinhão, a graveta, a engaceira, o arrastão, "peso medonho"... Sargaaaaço! "A mulher muitas vezes ia com a roupa que tinha vestida. O homem tinha que mudar de roupa. O homem tirava as calças para vestir a branqueta de lã e o sueste. A mulher arregaçava a saia", conta o nosso guia.
Branqueta é o nome dado ao casaco de abas largas, até meio da coxa, cingido ao corpo até à cintura e alargando para baixo, em forma de saiote, de modo a deixar inteiramente livres os movimentos das pernas. É feito de pura lã, na cor natural, o branco, donde vem o nome. Abotoado de alto a baixo por pequenos botões do mesmo tecido, remata, no pescoço, com gola baixa. As mangas são compridas e justas ao braço. A gola, os punhos e as frentes são debruados com pesponto grosso e largo, geralmente duplo ou triplo, formando barra. À cintura o sargaceiro usa largo cinto preto, de cabedal. O sargaceiro usa sempre na cabeça uma protecção que tem o nome de sueste. É constituído por uma copa de quatro gomos reforçados e duas palas: uma, curta, na frente, e outra, mais larga e comprida, atrás. De pernas e pés nus, assim ficavam livres os movimentos, sem roupa a friccionar.
Peça central é o Adamastor, embarcação que trespassa os dois pisos do museu, desenhado pelo arquitecto António Morgado, preocupado em manter a volumetria da escola do Estado Novo, a pedra e um areal que é uma evocação aos recreios da nossa infância, em utilizar as madeiras como nos antigos abrigos e cabanas e apresentar o betão armado como forma de transportar a arte da apanha do sargaço para uma era de maior contemporaneidade. "Os apulienses fizeram disto vida. O mundo evoluiu, mas o sargaço pode continuar. Isso é que é cultura, uma identidade em evolução.