4.0
Uma espécie de exportação chinesa
Uma newsletter de João Pedro Pereira sobre inovação, tecnologia e o futuro.
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Na Índia, as mulheres hindus casadas usam um colar com um pendente metálico chamado mangalsutra. Também usam um anel num dedo do pé, chamado metti. Para a Foxcon – o gigante fabril taiwanês cuja sede está em Taipé e que tem as fábricas maioritariamente na China –, isto significou uma adaptação de procedimentos.
Nas fábricas da Foxconn que produzem equipamentos para a Apple, os trabalhadores passam por detectores de metais, uma medida de segurança destinada a evitar fugas de informação sobre novos produtos. Na Índia, onde a empresa também tem fábricas, as trabalhadoras casadas são revistadas à mão.
Este não é um pormenor muito importante – mas é um pormenor que ilustra o detalhe com que um excelente artigo do site Rest of World narra a estratégia da Foxconn para fabricar cada vez mais iPhones na Índia, onde a mão-de-obra é mais barata, mas onde as leis e os costumes são radicalmente diferentes.
O artigo (que citarei abundantemente, mas cujo link coloco em baixo, numa tentativa assumida de que o leitor acompanhe esta newsletter até ao fim) não é apenas mais um texto sobre as condições de trabalho da Foxconn, que é, neste capítulo, uma empresa de má fama.
É verdade que há o exemplo das nove trabalhadoras que moram num apartamento de um único quarto – trabalham (e dormem) por turnos. E as histórias das mulheres que desmaiam nas linhas de produção, algo que os supervisores chineses atribuem em parte ao facto de não se alimentarem bem e não comerem carne por questões religiosas. E o testemunho de uma trabalhadora que tem de verificar 526 motherboards por hora – uma a cada 6,8 segundos.
Mas o artigo é mais vasto do que isso. Analisa os enormes esforços da Foxconn para tentar exportar para a Índia os métodos, a cultura e os ritmos de trabalho avassaladores pelos quais as fábricas na China são conhecidas.
É uma estratégia motivada por mudanças na sociedade chinesa que tornaram mais difícil recrutar a mão-de-obra barata que foi o motor do crescimento do país. A população beneficiou do enorme crescimento que a China teve nas últimas décadas. Uma parte tem hoje níveis de educação mais elevados e ambições salariais menos compatíveis com as margens de produtos como o iPhone ou imensos outros. Escrevia o Wall Street Journal em Agosto, sob o título A era das coisas ultra-baratas está ameaçada, que "as fábricas na China estão com dificuldades em atrair trabalhadores jovens, o que são más notícias para os consumidores ocidentais acostumados a produtos baratos."
A Índia – que se tornou há meses o país mais populoso do mundo – tem aproveitado para se posicionar como uma alternativa. Procura construir pólos fabris destinados a sectores como a electrónica de consumo e a indústria automóvel.
A deslocação da produção feita na "fábrica do mundo" para outros países asiáticos (a Índia é o maior, mas não é o único em jogo) é um movimento que terá impactos geopolíticos. Especialmente, numa altura de tensão entre China e EUA, e quando a economia chinesa ainda se está a ressentir do abanão pandémico: está a caminho de terminar o ano com um crescimento em torno dos 5%; mas o mercado imobiliário está periclitante e paira a sombra da deflação.
A questão agora não é se a Índia consegue oferecer aquilo que fábricas como a Foxconn procuram. Não consegue. A mão-de-obra pode ser mais barata, mas falta um Governo de partido único e uma ditadura repressiva disposta a facilitar a vida das fábricas. E também faltam fornecedores numa competição desenfreada, dispostos a cortar as próprias margens. Como disse um gestor chinês a trabalhar na Índia: "A Apple foi mimada na China. Aqui, excepto a mão-de-obra, tudo o resto é caro."
Ao contrário do que acontece na China, na Índia há sindicatos. Também há governos locais, com leis laborais específicas. A Foxconn conseguiu convencer o governo do estado indiano de Tamil Nadu, onde tem fábricas, a autorizar jornadas de trabalho de 12 horas; mas o Rest of the World diz não haver indícios de que as empresas estejam a adoptar turnos com essa duração, em parte devido à oposição de políticos, de sindicatos e de grupos de defesa dos trabalhadores. Em parte, porque turnos de 12 horas ao ritmo da Foxconn seriam impossíveis de aguentar.
A cultura no local de trabalho é também muito diferente, como o artigo descreve com múltiplos episódios.
Um trabalhador chinês teorizou que os colegas indianos são menos apegados a bens materiais e, por isso, mais difíceis de motivar com bónus para trabalharem mais. Um tradutor contou que os trabalhadores indianos não percebiam por que motivo os colegas chineses ficavam tão irritados com uma avaria de 30 minutos num equipamento; mas, com o tempo, foram-se tornando mais preocupados com este género de atrasos.
A questão, portanto, é saber se a Foxconn consegue instaurar a cultura de trabalho que tem na China. Está a tentar arduamente: envia para a Índia engenheiros, gestores e supervisores chineses. E envia equipamento: das máquinas ao software, boa parte das linhas de produção tem texto em mandarim; até os botões de emergência.
Também está a replicar a estratégia que já teve na China de preferir mulheres jovens para as linhas de montagem. Pobres e com poucas opções, um emprego fabril é uma forma não só de mitigarem a pobreza, mas também de fugirem ao controlo parental. As que moram em alojamentos da empresa – que na Índia se chamam hostels – têm uma hora de recolher obrigatório; para passarem uma noite fora, têm de avisar. A Foxconn garante autocarros para as transportar de casa para o trabalho. São formas de convencerem os pais a deixarem as filhas trabalhar.
Este ano, pela primeira vez, as fábricas da Foxconn na Índia produziram novos iPhones logo para o dia do lançamento. As versões Plus e Pro, mais avançadas, ainda são feitas exclusivamente na China. Mas é um marco: até aqui, a Índia só fabricava modelos que já tinham sido lançados e para os quais não havia a pressão da estreia no mercado.
Não é a única boa notícia para as ambições indianas: há poucos dias, a imprensa noticiou que a Tesla está pronta para criar uma fábrica naquele país, um investimento que o Governo de Narendra Modi anda há muito a tentar captar. Em contrapartida, as autoridades indianas deverão baixar os impostos sobre os veículos eléctricos importados, facilitando assim o negócio às marcas. Na China, a Tesla tem sido muito apoiada por Pequim.
Resta uma dúvida: a de saber se uma democracia (ainda que muito imperfeita e desigual) consegue ser a próxima "fábrica do mundo". Parte da resposta estará na disponibilidade dos consumidores, em especial nos países ocidentais, para aceitarem preços mais altos a troco de processos fabris com menos custos humanos (algo que não tem sido exactamente uma tendência...). Estes processos são lentos e não teremos respostas tão cedo.
E finalmente: o excepcional (e muito longo) artigo do Rest of World pode ser lido aqui, gratuitamente. Mas, no final, há uma opção para fazer um donativo ao site. É dinheiro bem gasto.