Centenário de Maria Callas: recordar a vida (e voz) de La Divina
Uma das vozes (e presenças) maiores do canto operático nasceu a 2 de Dezembro de 1923.
“Quando interpretamos um papel, temos de ter mil cores para retratar a felicidade, a alegria, a tristeza, o medo. Como é que se pode fazer isto apenas com uma voz bonita?” A frase é atribuída a Maria Callas na biografia de Anne Edwards, lançada em 2001, e resume a exigência que a soprano colocava sobre si sempre que subia a palco.
La Divina, como tantos chamaram a uma das vozes (e presenças) maiores do canto operático, nasceu há cem anos, efeméride assinalada com um museu que se dedica ao seu legado (foi inaugurado, em Atenas, em Outubro), exposições dedicadas à sua vida e arte, um pouco por todo o mundo, como Maria Callas. Retratos do Arquivo Publifoto Intesa Sanpaolo, na Gallerie d’Italia, em Milão (até 18 de Fevereiro), e outras homenagens, também por cá, nomeadamente com o Espectáculo Comemorativo do Centenário do Nascimento de Maria Callas, no Centro Cultural Olga Cadaval, Sintra, com a direcção artística e musical de Raul Pinto e a participação da soprano Lara Martins.
Maria Anna Cecilia Sofia Kalogeropoulos nasceu em Nova Iorque, a 2 de Dezembro de 1923, apenas alguns meses depois de os pais, de nacionalidade grega, terem emigrado para os EUA — uma decisão do pai, George Kalogeropoulos, que a mãe, Litsa, recebeu de mal-grado. Por isso, quando o casamento terminou, a mãe regressou à Grécia, levando consigo as duas filhas. Maria tinha, na altura, 13 anos, e foi em Atenas que iniciou os seus estudos musicais, ainda que tivesse começado a dar provas da sua voz muito mais cedo. “Obrigaram-me a cantar quando tinha apenas cinco anos, e eu detestava”, chegou a recordar.
Independentemente de não gostar da pressão da mãe para usar a voz, acabou por se apaixonar pela ópera e desenvolver as suas capacidades no Conservatório de Atenas, onde estudou com a famosa soprano Elvira de Hidalgo, tendo por base a tradição italiana do bel canto do início do século XIX.
Callas estreou-se profissionalmente em 1942. Tinha apenas 18 anos, mas deu à personagem Floria Tosca, na Tosca de Puccini, um rasgo de genialidade que fez com que o papel se colasse à sua imagem e voz. Seguiram-se muitas outras personagens, como Santuzza (na Cavalleria rusticana de Mascagni), Leonore (em Fidelio, a única ópera de Beethoven) ou Norma (na ópera homónima de Vincenzo Bellini).
Aos 21, regressou aos EUA, e, a partir daí, somaram-se êxitos atrás de êxitos, como a cantar La Gioconda, de Ponchielli, em Verona, sob a direcção do maestro italiano Tullio Serafin, que foi uma espécie de mentor e a aproximou das obras italianas mais antigas que pediam uma voz leve.
Da mesma forma que somava fãs, reunia inimizades: desentendeu-se com o director-geral do Met Opera, Rudolf Bing, e corria tinta sobre a rivalidade com a soprano Renata Tebaldi.
Mas, no auge da sua carreira, na década de 1950, começou a revelar alguns problemas com a voz. Só que a emoção que colocava ao serviço do canto fazia com que qualquer irregularidade com as suas cordas vocais se desvanecesse. Ainda assim, pôs um ponto final na carreira de forma precoce: a sua última aparição operática foi em Julho de 1965, em Tosca, em Covent Garden. Tinha apenas 41 anos.
A tragédia na vida
Se, em palco, Callas vestia os papéis mais trágicos de forma ímpar, na realidade, teve de suportar tragédias que acabariam por a moldar. Desde o seu nascimento, em que a mãe, convencida de estar grávida de um rapaz, se recusou a olhar para ela durante dias, até à adolescência na Grécia, em que a matriarca obrigava a irmã a prostituir-se com os soldados alemães e italianos que ocuparam o país durante a Segunda Guerra (Maria, que não igualava a beleza da irmã, era “apenas” obrigada a cantar para eles).
Anos depois, quando já era famosa, relata a biografia Cast a Diva: The Hidden Life of Maria Callas (The History Press), de Lyndsy Spence, lançada em 2021 — que transcreve correspondência entre a cantora e o seu padrinho e confidente, Leo Lerman —, a mãe viria a chantageá-la: ou lhe dava dinheiro ou contaria à imprensa esses episódios menos bonitos da família.
O livro também desbrava outra realidade sobre a relação com Aristóteles Onassis, por quem se apaixonou e se divorciou do seu primeiro marido, Giovanni Battista Meneghini, em 1959. Apesar de ser mais comum enaltecer o amor entre os dois, a biografia revela escritos de Callas que demonstram uma relação tóxica. Em 1966, escreveu: “Não quero que me ligue e comece outra vez a torturar-me.” Noutra missiva, descreve um episódio em que foi drogada pelo amante, relatando que, nesse estado, ele abusou sexualmente dela.
Depois do fim da relação com Onassis (que, entretanto, a trocou por Jacqueline Kennedy, com quem o magnata se casou em 1968), Callas tentou reavivar a sua carreira. Mas, apesar do regresso, a estrela já não voltou a brilhar. Morreu em 1977, com apenas 53 anos, vítima de um ataque cardíaco.