Devia ir mais a Tondela
Tondela é sentir esta culpa de não ir mais a Tondela, essa culpa que temos quando não vamos aos nossos sítios e os imaginamos sozinhos, a julgar o nosso abandono, num choro de humidade e bolor.
Devia ir mais a Tondela. Tondela é a minha avó sentada na cadeira de plástico da piscina, à sombra da cameleira, já meio calada, a olhar para os nossos mergulhos. Tondela, para mim, é a casa e o jardim. É ir em criança ao café no centro da cidade e perguntar: “Podemos voltar para Tondela?”
Tondela são as minhas primas a pôr a mesa com toalhas na cabeça, a contar quantos somos agora, com os que foram e os que chegaram. Tondela são corredores escuros com quadros de antepassados em trajes com golas de renda e olhar de lémures espantados.
Tondela é encontrar toupeiras mortas na relva e organizar-lhes funerais emotivos com caixões feitos de caixas de After Eight. Tondela são jardineiras com remendos nos joelhos e algum adulto a esfregar-nos as unhas para tirar a lama com uma escovinha que faz comichão.
Tondela são primos distantes que nos vêm visitar a Lisboa e eu, com cinco anos, a perguntar: “Então, agora já não dizes 'coêlho'?”
Tondela é irmos por uma orelha a casa da minha tia-avó que tocava piano e que nunca se casou, que se chamava Felícia e detestava o nome, e que parecia muito mais infelícia do que felícia. Em sua casa estava sempre a dar o Preço Certo, cheirava a naftalina e nós queríamos brincar, mas as nossas mães obrigavam-nos a ficar quietos no sofá, enquanto ela passava por nós os olhos um pouco mais alegres, e nos dava bolachas sortidas que vinham nas caixas de metal que se usam para guardar objectos de costura.
Tondela é a Feira encostada ao muro da casa e implorarmos às nossas mães para trazermos pintainhos assustados que púnhamos a espernear na banheira.
Tondela é a imagem distante do meu pai a pisar as uvas, do Vale das Perdizes, da parreira e do poço. Tondela são as fotografias do meu primeiro mês de vida, metida numa alcofa, embrulhada em cobertores, embalada pelo passeio dos meus pais jovens, pálidos e felizes.
Tondela é o Caramulo ao fundo com restinhos de neve. Tondela é o meu tio a ler o jornal lá fora, a reclamar por estarem todos a dormir. Tondela é irmos à varanda ver passar a marcha de Carnaval e fugirmos assustados dos cânticos dos bêbados. Tondela são os lençóis gelados da humidade e o quadro medonho dos cavalos a correr. Tondela é a sopa da Rosa e a minha avó ajoelhada na capela.
Tondela é também a Barragem da Aguieira e a alegria de andarmos de canoa e de nos enterrarmos no lodo, enfiados nuns coletes cor de laranja.
Tondela são as primeiras peças de teatro, aplaudidas por uma plateia parcial, comprada pelo afecto. Tondela são os sacos de pão da Rosicar na bancada da cozinha.
Tondela é dormirmos todos no quarto da nossa avó.
Tondela é a sala cheia de fumo e um comité de pinças de ferro à volta da lareira, a tentar que pegue. Tondela são as bicicletas com os cestinhos, que nos dizem que eram das nossas mães, e acharmos impossível que aquelas figuras inertes, deitadas ao sol a afugentar as moscas e a folhear um livro, algum dia tenham pedalado ali.
Tondela sou eu e o meu primo a assoar-nos das alergias, à procura de alguma pista em álbuns antigos, sempre à beira de desvendarmos um mistério.
Tondela é o dia do funeral da nossa avó, e olharmos uns para os outros, desamparados.
Tondela é pegar as minhas filhas ao colo para puxarem as laranjas das árvores.
Tondela é sentir esta culpa de não ir mais a Tondela, essa culpa que temos quando não vamos aos nossos sítios e os imaginamos sozinhos, a julgar o nosso abandono, num choro de humidade e bolor. É sentir a penalização silenciosa do bosque, e pensar nas boas memórias a enferrujarem no lagar.
Devia ir mais a Tondela.