No Natal há um prato que não pode faltar: discussões com todos
Haja talento para pôr na ordem tanto recurso humano. A probabilidade de alguém se chatear na noite de Natal é igual à probabilidade de se comer bacalhau na consoada.
Crescemos juntos, partilhámos as mesmas dificuldades, sabemos o feitio de cada um, as personalidades, umas mais fortes que outras. E no fundo amamo-nos. É a própria película Sozinho em Casa que mostra que apesar de nos podermos arreliar, na verdade somos dependentes uns dos outros. Mas nada como uma boa reunião familiar e alguns martinis pelo meio, para os ânimos se exaltarem. E acredito que é melhor discutir do que passar uma refeição agarrado ao telemóvel. Faz parte, qual tradição natalícia, interagir, abordar diferentes pontos de vista, nem sempre no registo mais adequado.
— Sais mesmo ao teu pai, teimoso que nem uma mula.
— A tua tia se tivesse juízo, não te oferecia um telemóvel.
— Sou eu que faço tudo nesta casa.
— Oh mãe, sempre a mesma conversa!
— Quem vai buscar a avó?
— Sou sempre eu, tudo eu.
— Este ano não há prendas, vos garanto.
— Da próxima vez, não venho. Passei o dia na cozinha e ninguém ajuda.
— Olha, vai avisar o teu tio que já está a beber demais.
— Não impliques com o teu irmão!
— Esqueceram-se do óleo? Como vou fritar as filhoses se já está tudo fechado?
— Dói-me a cabeça.
— Ninguém vem à missa comigo?
— Que seca, não trouxe a PS.
— Não comas de boca aberta.
— Volta Salazar, estás perdoado.
— Volta quem?
— São umas galdérias, hoje em dia.
— Tens aí uma neta...
— Opa! Parem! Quem quer fumar?
— Ninguém sai para a rua que está frio.
— Se não paras quieto, é hoje que vês o chinelo a voar.
— Larga o telemóvel.
— A tua madrinha deu-te panos de cozinha?
As fotografias embonecadas para o Instagram, seja de uma família de anónimos seja de uma família de celebridades, escondem esta realidade dos dias natalícios. Por detrás dos beijos ao pé do pinheiro e dos filhos estrategicamente posicionados para a fotografia, está a saudável diferença de opiniões e perspetivas que explode em temporada natalícia. A época de paz transforma-se num rebuliço de palavras e por vezes palavrões, a tal ponto que alguns ponderam isolar-se no Tibete e regressar dois dias depois.
A solidão que invoca uma certa pena pode afinal de contas tornar-se uma opção válida e feliz, nomeadamente no Natal. Por esse país fora, não faltam hotéis e restaurantes que proporcionam a ceia natalícia. Houvesse vontade e sobretudo dinheiro e talvez se evitassem as discussões que têm como cerne a divisão de tarefas. Quem faz o quê é um dos dilemas do dia 24, a juntar a outros, quando se constitui família. Além de gerir a minha família, passo a ter de partilhar o meu tempo com a família do meu marido e mais uma boa dose de feitios totalmente diferentes. Haja talento para pôr na ordem tanto recurso humano. A probabilidade de alguém se chatear na noite de Natal é igual à probabilidade de se comer bacalhau na consoada.
Neste contexto, o consumismo desenfreado a que somos votados, se a carteira permitir, impulsiona este sintoma de mal-estar e frustração. Afinal, a época que relembra o nascimento do Menino Jesus, numa manjedoura, é celebrada hoje com promoções que se iniciam em outubro e que convocam filas de gente, imbuídas de tudo, menos do verdadeiro espírito natalício. Talvez os/as lojistas tenham muitas histórias para contar que ilustrem o pacifismo, a sobriedade, a compaixão e empatia que grassa por essas superfícies fora, nesta altura do ano.
Ainda a propósito da quadra natalícia, recentemente vi um anúncio da Marks & Spencer, marca de retalho britânica, que convida os consumidores a fazerem apenas aquilo de que gostam neste Natal. This Christmas do what you love é o mote da campanha criada pela agência Mother, e que pode ser interpretada como polémica para os que defendem as tradições, com unhas e dentes. Todavia, talvez seja mesmo esse o desafio a que nos devemos propor este ano, demasiado idealista, mas necessário, de querer um Natal à nossa imagem e medida. Este Natal faça apenas o que gosta e lembre-se: há quem não tenha sequer casa ou quem passe a quadra numa cama de hospital.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990