“Até as guerras têm regras” é uma citação que ouvimos por diversas vezes quando a comentar tópicos relativos a diferentes conflitos, quer sejam relativos à guerra entre a Rússia e a Ucrânia ou à chamada guerra entre Israel e o Hamas. Contudo, onde a certeza paira no que diz respeito aos crimes de guerra da Rússia, dúvidas parecem surgir aos pares quando se fala de Israel.
Um caso paradigmático recente são os ataques das forças de defesa israelita ao hospital Al-Shifa, o maior hospital de Gaza. Os hospitais, em situações de conflito, gozam de protecção especial e um olhar rápido na IV Convenção de Genebra revela que o seu artigo 18º diz expressamente o seguinte: "Os hospitais civis organizados para cuidar dos feridos, doentes, enfermos e parturientes não poderão, em qualquer circunstância, ser alvo de ataques; serão sempre respeitados e protegidos pelas Partes no conflito".
Apesar deste preceito do direito internacional, Israel atacou o hospital, e apresentou provas para o fazer. Segundo as FDI, o hospital seria usado como centro de comando do grupo paramilitar Hamas e que, decorrente deste facto, o hospital passa a ser um alvo legítimo.
Israel forneceu provas através de vídeos publicados nas suas páginas oficiais e disseminados pelos principais órgãos de comunicação social, entre essas provas Israel mostra um enorme poço, que diz ser uma entrada para um túnel do Hamas, embora essa informação não possa ser independentemente verificada.
Mostrou também o que dizia ser um calendário com os nomes de diferentes elementos do Hamas onde cada um teria o seu propósito e objectivo em atacar Israel, algo que se mostrou falso, pois o calendário apenas continha os dias da semana escrito em árabe, e por último, apontou um conjunto de armas, como AK-47 ou kalashnikov encontradas no interior do hospital.
Nunca revelou onde ficaria o centro de comando. Estas provas destinam-se a revogar o estatuto de protecção que os hospitais têm durante os conflitos, pois as Convenções de Genebra conferem esse estatuto a estas infra-estruturas civis, mas também revogam esse mesmo estatuto, no artigo 19º, que indica que: "A protecção concedida aos hospitais civis não poderá cessar, a não ser que os mesmos sejam utilizados para cometer, fora dos seus deveres humanitários, actos prejudiciais ao inimigo."
O que Israel tentou demonstrar, e de acordo com a Human Right Watch, de forma claramente insuficiente, é que o hospital foi usado para conduzir ataques prejudiciais a Israel, algo que as provas que as FDI apresentam não permitem concluir. Isto porque, até a presença de armas no hospital, acreditando em todas as provas fornecidas pelas FDI, não retira o estatuto de protecção que o hospital tem, uma vez que a Convenção de Genebra é bastante clara nesta questão.
No terceiro ponto do artigo 19ª lê-se: "Não será considerado como acto hostil o facto de militares feridos ou doentes serem tratados nestes hospitais ou serem ali encontradas armas portáteis e munições tiradas aos mesmos (…)".
Semelhante à situação do hospital, Israel já bombardeou centros de refugiados, estruturas residenciais civis e até escolas ao abrigo da ONU, sendo que mais de 100 membros da organização das Nações Unidas já foram mortos em consequência dos bombardeamentos de Israel.
Membros dos Médicos Sem Fronteiras e do Crescente Vermelho já negaram a presença de qualquer centro de comando do Hamas no hospital. Se as alegações de Israel são verdadeiras, as autoridades israelitas que permitam uma investigação independente por parte da ONU para realmente verificar esse alegado centro de comando da organização paramilitar.
Fazer de um hospital um centro de ataque e um objectivo militar é bizarro e não é de todo consentâneo com o direito internacional humanitário, tal como não é coerente com esse mesmo direito internacional negar a entrada de comida, água e combustível necessários para a sobrevivência da população civil, mesmo que essa população civil seja inimiga, tal como prevê a Convenção de Genebra.
Não existe um direito internacional humanitário para uns e um direito internacional humanitário para outros. Um Estado que não cumpre os mais básicos preceitos do direito internacional e comete crimes de guerra em directo, que não cumpre as resoluções da ONU e pede a demissão imediata do seu secretário-geral arrisca-se a ser um Estado pária.