Em Ponte de Lima nasceu uma “livrearia” — sem funcionários nem caixa
O objectivo é que qualquer pessoa entre e se sente a ler. Se quiser levar um livro, basta ir a um dos “comércios vizinhos” e pagar. “É um negócio de uma vila” onde as pessoas são próximas, diz Manuel.
Manuel Pimenta decidiu chamar "Livrearia" ao espaço que criou no centro histórico de Ponte de Lima, onde os livros são "jóias" acessíveis a todos num "tributo à palavra, aos livros e aos seus autores".
Na loja antiga do avô, no largo da Matriz, onde Manuel Pimenta instalou a livrearia não há funcionários, nem caixa registadora. Há estantes com livros e um convite a "voar" para "dentro deles".
No letreiro, em português e inglês, colocado à porta, o aviso explica o conceito do espaço: "Comece por desapertar o cinto que o prende à terra e sinta-se convidado a voar para dentro dos livros. Caso se apaixone por algum, mantenha a calma e agarre-se bem a ele. Depois dirija-se a um dos comércios vizinhos para tratar das formalidades. Poderá fazê-lo na padaria ao lado, no pronto-a-vestir, duas casas à esquerda ou, na farmácia, também situada neste apolíneo largo".
"A interacção com os vizinhos [onde é feito pagamento dos livros] flui naturalmente. É como quando emprestamos uma coisa ou avisamos que o rio [Lima] está cheio. Desde o tempo do meu avô que é um largo muito solidário. É a nossa natureza minhota, nortenha, portuguesa, com certeza", explicou Manuel Pimenta.
Além dos "vizinhos" que ajudam a tomar conta do espaço, uma imagem de Santo António com o menino Jesus ao colo e uma estátua de Dom Quixote formam a "equipa" de colaboradores "inventada" por Manuel Pimenta para "encantar" um espaço de fruição do livro e da leitura.
"O Dom Quixote é um bom guarda. Roga pragas a quem quiser tirar livros sem pagar", brinca Manuel Pimenta.
De portas abertas há um mês, a livrearia, sem outros guardas ou vigilantes, ainda não foi vítima dos "amigos do alheio".
"Este negócio que criei dificilmente conseguiria ser possível numa cidade grande. Isto é um negócio de uma vila onde as pessoas interagem de forma muito próxima, que recebe muita gente de fora que tem acarinhado muito a ideia, porque acham que é uma boa forma de valorizar o livro", observou.
As "obras de arte" da livrearia podem ser vendidas, como explica o letreiro da entrada, por "dez euros para quem for excêntrico ou tiver perdido o juízo, cinco euros para o cidadão comum e gratuito para quem tiver o triste prazer de roubar sem necessidade".
O "apuro" do comércio partilhado nas páginas das redes sociais que Manuel Pimenta utiliza para divulgar o espaço "será unicamente usado para as 'maleitas', despesas e para a criação de eventos dedicados à palavra escrita".
O primeiro evento artístico está marcado para dia 23 de Dezembro, às 17h, com Ana Deus, vocalista da banda portuense Três Tristes Tigres. A sessão será acompanhada por violino e harpa.
A livrearia era um "sonho antigo" do farmacêutico de 49 anos, que "sempre gostou de ler". Orgulhoso do legado que herdou — a farmácia da família que gere no largo da Matriz, em frente à livrearia —, Manuel Pimenta "sentia necessidade" de "criar de raiz" um projecto ligado à literatura e organização de eventos artísticos.
Assim nasceu, na loja do avô, que se encontrava "de pantanas" a "extravagância" de Manuel Pimenta que pretende "acrescentar algo à vida das pessoas".
As "peças" que preenchem as estantes são escolhidas por "pura intuição". Além do conteúdo, Manuel Pimenta interessa-se pelo "aspecto visual" do livro para "colorir a livrearia".
"Não quero ter livros de forma massificada. Os livros a monte parecem coisas sem valor. Os livros que aqui estão são obras de arte, são fenomenais e têm de ter o seu destaque", afirmou.
Projectada pelos amigos arquitectos Paulo Afonso e Joana Nunes e pela designer Madalena Martins, a livrearia tem um aspecto singelo. Ocupa o rés-do-chão de um edifício antigo. As janelas do apartamento do primeiro andar têm vista para o interior da livrearia e é nessa espécie de clarabóia que está pendurado o livro de reclamações.
O branco que cobre o cimento das paredes e os candeeiros suspensos no tecto realçam as estantes e "enchem de luz" os livros que aguardam por quem os queira ler.