Passevinho, o encontro dos “cuidadores da terra” que fazem vinho e querem “crescer juntos”

Partilham uma filosofia: gostam de vinhos de pouca intervenção e de uma “abordagem colectiva e humanista”. Os produtores reunidos no Passevinho recuperaram vinhas de família e gostam de experimentar.

NFS Nuno Ferreira Santos - 13 Novembro 2023  -  Varios produtores de vinho numa prova de vinhos no restaurante Prado
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O grupo de produtores reunidos no Passevinho, no restaurante Prado, em Lisboa Nuno Ferreira Santos / Público
NFS Nuno Ferreira Santos - 13 Novembro 2023  -  Varios produtores de vinho numa prova de vinhos no restaurante Prado
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João Oliveira, Tiago Teles, e António Marques da Cruz, do projecto COZs Nuno Ferreira Santos / Público
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Se houve palavra repetida muitas vezes ao longo das três horas e meia da 7.ª edição do Passevinho — o encontro de “produtores de vinho independentes, de pequena dimensão, que partilham uma abordagem colectiva e humanista” —​, essa palavra foi “aprendizagem”.

Reunidos no restaurante Prado, em Lisboa, a 13 de Novembro, os dez produtores apresentaram cada um três vinhos, explicando o que os levou a fazer cada um deles, e insistindo numa ideia: o que aqui acontece é “uma aprendizagem”.

O que os junta, explicou no início Tiago Teles, que, para além dos vinhos em seu nome, faz parte do projecto COZs com António Marques da Cruz, é uma “partilha de valores de trabalho” e um desejo de “crescer juntos, com um espírito mais humano, em torno da cultura do vinho”.

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Tiago Teles faz o Gilda, na Bairrada, o Raíz em Arcos de Valdevez, e o projecto Cozs, com António Marques da Cruz Nuno Ferreira Santos / Público

Ou, como disse Sílvia Mourão Bastos, que, com Nadir Bensmail, apresentou o projecto Tomaralmá, por trás desta “loucura toda” está a vontade de um “enraizamento nas terras dos nossos antepassados, num momento em que as gerações mais velhas começam a desaparecer”. É então que “a malta se chega à frente para cuidar das terras”. E essa, diz, é a sua função principal – “ser cuidadora”.

Sílvia e Nadir baptizaram-se com aquele que, segundo algumas teses, é o antigo nome da cidade de Tomar, e que significa água de tâmara ou água doce, e pegaram no terreno cujas uvas o avô de Sílvia vendia à cooperativa, em Moreiras Grandes, aldeia entre Torres Novas e Tomar. Plantaram um hectare de vinha e querem “cuidar da terra e fazer o melhor vinho” que conseguirem.

“Quero manter uma dose de experimentalismo e uma ligação às raízes, para me ir conhecendo”, diz, por seu lado, Tiago Teles, que, com os vinhos Raiz e Gilda, olha para as suas origens, em Arcos de Valdevez, região dos Vinhos Verdes, nas terras que eram do avô materno e onde compra as uvas ao primo que agora trata da propriedade; e, do lado do pai, desce até à Bairrada, onde faz o Gilda, um vinho que “nasceu com Merlot, evoluiu para Castelão, e agora é 80% Alfrocheiro e 20% Baga”, porque, já o sabemos, tudo é uma aprendizagem.

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Nadir Bensmail e Sílvia Bastos do Toraralmá, em Ourém Nuno Ferreira Santos / Público

Experimentar e aprender é o que fazem também Joana Vivas e os seus quatro primos com os vinhos Serra Oca, nascidos na Quinta do Olival da Murta, uma propriedade familiar junto à serra de Montejunto, onde o avô produzia uvas para vender.

Os primos, que, como todos os produtores reunidos no Passevinho, utilizam métodos de produção ambientalmente sustentáveis, trabalhando em agricultura biológica certificada desde 2016, arriscaram, entre outros, fazer um Moscatel “sério, que possa acompanhar comida”, usando o engaço, “para o tornar mais complexo” e reforçando essa complexidade com seis dias de curtimenta.

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Francisco, Joana, e José Vivas, parte da quinta geração da família à frente da Quinta do Olival da Murta Nuno Ferreira Santos / Público

Muitas das vinhas destes produtores são localizadas junto à costa, a uma ou duas dezenas de quilómetros de distância do mar, nas regiões de Lisboa e do Tejo. Em Torres Vedras, Sónia Raposo e Pedro Marques têm o projecto Las Vedras, em que misturam castas portuguesas como a Aragonês ou a Castelão com francesas como o Cabernet Sauvignon. Com os vinhos que fazem – Limo Las Vedras, Tinto Corrente, Tinto Las Vedras Pero Negro – querem precisamente mostrar “a proximidade do mar e a influência dos solos argilo-calcários”, mas também “a componente de envelhecimento”, enquanto trabalham com castas como a Tinta Miúda, “bastante resistente às doenças e por isso boa para pensar o futuro”, com as alterações climáticas a exigir uma viticultura mais resiliente.

E, por falar em longevidade, António Marques da Cruz, da Quinta da Serradinha (Encostas de Aire, região de Lisboa), levou para prova um Tinto Serradinha de 2003 que veio contrariar a ideia, que muitos têm, de que os vinhos de pouca intervenção, chamemos-lhes naturais ou outra coisa, não têm capacidade de envelhecimento.

Trata-se, mais uma vez, de um projecto familiar, que, com António, vai na quinta geração – oito hectares de vinhas voltadas para a serra d’Aire, a uns meros 15 quilómetros do Atlântico. Duas das vinhas são antigas, plantadas nos anos de 1950 pelo avô, a que se juntaram os quatro hectares plantados pelo pai nos anos de 1990 e 1,5 hectares plantados em 2022, com castas já escolhidas por António, que começou a fazer vinho precisamente em 2003. Foi esse primeiro vinho que, sem medos, levou para a prova, confirmando que pelo menos durante 20 anos este tinto soube aguentar-se.

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António Marques da Cruz e Joana Cartaxo, da Quinta da Serradinha Nuno Ferreira Santos / Público
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Rodrigo Filipe, produtor do Humus, de Óbidos Nuno Ferreira Santos / Público

Para além de ser também um guardião da terra, António, cuja quinta está em regime biológico desde 1978 e certificada desde 1994, é um defensor da ideia de que é preciso plantar clones diferentes e um entusiasta do trabalho de selecção das castas nacionais que tem vindo a ser feito por Antero Martins, professor jubilado do Instituto Superior de Agronomia e presidente da Porvid – Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira. “Quanto mais clones diferentes tivermos, maior é a complexidade do vinho”, defendeu. “Todos devemos ser guardiães desta diversidade genética que temos. Com as alterações climáticas, mais cedo ou mais tarde vamos precisar de muitas destas castas.”

Na Encosta da Quinta, em Alvorninha, onde faz o Humus, Rodrigo Filipe também tem vindo a experimentar. Está igualmente a pouca distância do mar – apenas 20 quilómetros – com “uma influência atlântica muito forte”, e tem trabalhado sobretudo com Fernão Pires, Arinto e Vital. Uma divergência amigável que tem com António Marques da Cruz e Tiago Teles tem a ver com a Vital. Enquanto estes, com o projecto COZs, na serra de Montejunto, têm vindo “fazer um esforço para aumentar a plantação” de Vital, Rodrigo arrancou uma parte da vinha com esta casta e confessa-se muito mais encantado com a Fernão Pires, que, diz, “podia ser uma bandeira da nossa região”.

Respeitar o ano e o lugar

Para além do “núcleo duro” do Passevinho, os organizadores do encontro convidaram três outros produtores para apresentarem os seus vinhos: a Quinta da Costa do Pinhão, do Douro, Salta Muros, de Miuzela do Côa, Beira Alta, e Penhó Wines, de Celorico de Baixo, região do Vinho Verde.

Catarina Bento e David Prata, do Salta Muros, não vêm da área dos vinhos, mas, como tantos outros no encontro do Passevinho, pegaram nas vinhas de uma propriedade familiar em Miuzela, aldeia a 800 metros de altitude, nas margens do Côa, e, com vinhas velhas de castas misturadas, que “nem as pessoas da aldeia" os conseguem "ajudar a identificar”, fazem vinhos que são também uma homenagem ao avô de David. Estão "no início", fazem poucas garrafas, mas, confessam, felizes, já lhes parece imenso”.

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David Prata (Saltamuros) Nuno Ferreira Santos / Público
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Miguel Morais e Filipa Silva, da Quinta da Costa do Pinhão Nuno Ferreira Santos / Público

A Quinta da Costa do Pinhão tem uma história muito diferente, com “um percurso mais convencional que começou há mais de seis gerações com uma família Sousa do Douro". Houve três gerações a produzir uva e a vinificar para vinho do Porto, a quarta a vender uva para Porto, e a quinta que "herdou e passou imediatamente à sexta”.

Agora, com Miguel Morais, da sexta geração, e Filipa Silva, o caminho é outro – se bem que, confessa Miguel, não tenham posto de lado a ideia de voltar a fazer vinho do Porto. Para já, a aposta são os vinhos tranquilos (trouxeram três tintos, de 2015, 2018 e 2019) saídos dos 17 hectares de vinha rodeados por oito de floresta e trabalhados com “menor intervenção e maior trabalho manual na vinha e na adega”.

De Ricardo Moreira, da Penhó Wines (que não esteve presente, mas pediu a um amigo para o representar), vieram vinhos com muita personalidade, como o Rosé Carmin, feito com uma base de vinho branco (Azal e Trajadura) que fica três meses em contacto com as películas de Vinhão —​ no fundo “feito como uma infusão e ideal para os pratos minhotos”. E também um Vinhão, o Tinto Princípio, em que a pisa a pé é feita até a fermentação terminar, ou seja, ao longo de vários dias.

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Alberto Fernandes em representação do Ricardo Moreira (Penhó Wines) Nuno Ferreira Santos / Público

Ricardo também voltou, em 2018, às vinhas da família e reabriu as portas de uma adega que, ao fim de 300 anos de vida, tinham encerrado em 2001, deixando os lagares “votados a repositório de folhas e habitat de pássaros". O pequeno texto de apresentação da Penhó Wines lembra que nesta região “os vinhos não se assinavam e valiam pelo ano em que eram feitos” e “assim continuam, o autor pouco mérito tem, as veleidades da curadoria nunca foram sedutoras e as castas da região continuam a imperar com uma nova aproximação programática e um corpo de conceitos a texturar as marcas do ano”.

Para estes "cuidadores da terra", unidos por uma filosofia de fazer vinho com pouca intervenção, respeitando o ano e o lugar, os caminhos podem ser múltiplos e as aprendizagens, com os seus erros e vitórias, são para partilhar.

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