Postal de Gouveia: Cabine de leitura

Quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do Mundo. Refiro-me, sim, à aceitação da luta necessária.

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"Pedi um café, sentei-me, abri o livro ao calhas e li algumas frases na diagonal" João da Silva
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O “Espaço Arte e Memória” de Gouveia, nas traseiras do edifício da câmara municipal (antigo Colégio dos Jesuítas, século XVIII), é um espaço de preservação e divulgação da história e cultura da cidade e salvaguarda da memória coletiva dos gouveenses. Além de importante acervo de arte sacra, azulejos setecentistas e outras peças de inquestionável interesse histórico, há uma pequena exposição de fotografias da cidade nos anos 30 e 40 do século passado. As imagens são da autoria de João Carvalho e César Nogueira e permitem perceber as importantes alterações paisagísticas e arquitetónicas de Gouveia. Não conheço a localidade a fundo, pelo que tive dificuldade em identificar a maioria dos lugares retratados. Todavia, foi sem complexidade que descobri a Praça de São Pedro, que deve o nome à igreja de São Pedro (século XVII), a imagem mais icónica de Gouveia.

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Do “Espaço Arte e Memória” à Praça de São Pedro são dois passos. Sempre a descer. Depressa apurei o que já sabia: perderam-se algumas árvores e ganhou-se uma fonte, um busto de Virgílio Ferreira (natural da aldeia de Melo, que o escritor apelidou de “Aldeia Eterna”), e a “Cabine de Leitura – Leva e Traz”, uma cabine telefónica das antigas transformada em minibiblioteca onde os potenciais leitores são convidados, como noutra biblioteca qualquer, a “Levar. Ler. Devolver. Doar”.

Abri o Olhai os Lírios do Campo de Erico Veríssimo: “O vento varria a rua, sacudia as árvores sem folhas, fazia voar pedaços de palha…” Sorri da coincidência. Trocássemos palha por folhas caídas e acrescentássemos chuva, teríamos a descrição perfeita do estado do tempo em Gouveia naquele exato momento. Noutra página: “Há na Terra um grande trabalho a realizar. É tarefa para seres fortes, para corações corajosos. Não podemos cruzar os braços enquanto os aproveitadores sem escrúpulos engendram os monopólios ambiciosos, as guerras e as intrigas cruéis. Temos de fazer-lhes frente. É indispensável que conquistemos este mundo, não com as armas do ódio e da violência e sim com as do amor e da persuasão. (…) Quando falo em conquista, quero dizer a conquista de uma situação decente para todas as criaturas humanas, a conquista da paz digna, do espírito de cooperação.

E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do Mundo. Refiro-me, sim, à aceitação da luta necessária, do sofrimento que essa luta nos trará, das horas amargas a que ela forçosamente nos há-de levar. Precisamos, portanto, de criaturas de boa vontade.”

Fechei o livro e observei a rua. Algumas pessoas apressavam-se a entrar na Igreja de São Pedro para a missa dominical. Belo sermão teria dado este trecho.

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Com o recém requisitado Elogio da Sede de José Tolentino de Mendonça debaixo do braço, refugiei-me do frio e da chuva no Café Pastelaria Lá na Praça, paredes-meias com a igreja. Pedi um café, sentei-me, abri o livro ao calhas e li algumas frases na diagonal. Fechei-o e bebi o café de um trago. Reabri o Elogio da Sede e detive-me na página 42. Tolentino cita Milan Kundera, em A Lentidão: “Há um laço secreto entre lentidão e memória, entre velocidade e esquecimento. Tomemos uma situação das mais banais: um homem caminha pela estrada. Por instantes, procura recordar-se de alguma coisa que, no entanto, lhe escapa. Então, instintivamente, ralenta o passo... Na matemática existencial esta experiência assume a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.”

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Fechei o livro e fixei-me na televisão. Devido à falta de energia, recém-nascidos e bebés prematuros foram retirados das incubadoras num hospital em Gaza. “Tivemos de os embrulhar em papel de alumínio e colocá-los perto de água quente para tentar mantê-los vivos”, alertava o diretor do hospital.

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“O grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.”
Milan Kundera, A Lentidão

(Prestar atenção, não deixar cair no esquecimento,)

“Levar. Ler. Devolver. Doar.”

Cabine de leitura – Leva e Traz, Praça de São Pedro de Gouveia

(Guardar, interpretar, denunciar, fazer o bem,)

“Precisamos, portanto, de criaturas de boa vontade”

Olívia em Olhai os Lírios do Campo, de Erico Veríssimo

(apelar à paz, ao fim do ódio e da violência,)

“Chora aos berros como as crianças até te estafares. Verás que depois adormeces.”
Virgílio Ferreira, em Pensar

(para que a consciência não nos pese tanto.)

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No que é que nos estamos a tornar?


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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