Mais uma parva a fazer queixinhas
Dois agentes olhavam para mim como se eu fosse mais uma parva que aparecia a fazer queixinhas do namorado. Tinha a cara toda negra no lado em que levei três murros. Parecia não os inquietar.
Três socos do mesmo lado da cara, um coice na canela esquerda e uma "escarradela" entre os olhos. Aquilo não foi o fim de uma relação, foi um crime. Apanhou-me à porta do prédio e encheu-me de porrada, o homem com quem partilhei quatro anos da minha vida.
Durante os anos em que vivemos juntos nunca foi violento, mostrou-se sempre meigo e dócil, mesmo quando bebia em ocasiões sociais; uma besta disfarçada de peluche. Quando lhe disse que queria terminar a relação porque tinha conhecido uma pessoa, apesar de não o ter traído e de não se ter passado rigorosamente nada, deu-me um estalo. Magoou-me, mas fiquei sobretudo chocada.
Não estava à espera daquilo. Um gesto tão bruto vindo de alguém que dizia amar-me. "Não te vais separar de mim. Tu és a minha pessoa", declarou a seco depois da estalada e saiu porta fora. Só voltou passados uns dias, apanhou-me à entrada do prédio quando eu voltava do trabalho e fez de mim saco de boxe.
Pedi-lhe para parar enquanto chorava de medo e de dor, mas só interrompeu o ataque depois de me ter cuspido na cara, literalmente, com um bónus verbal: "Vaca". Deixou-me caída na entrada e foi-se embora. Fiz queixa dele na polícia. O enfado e despreocupação com que me receberam também me traumatizou bastante.
Dois agentes olhavam para mim como se eu fosse mais uma parva que aparecia a fazer queixinhas do namorado. Tinha a cara toda negra no lado em que levei três murros. Um pormenor que parecia não os inquietar. Tive de preencher uma data de papéis, responder a uma série de perguntas. Tudo muito asséptico e objectivo, era apenas mais uma miúda "ligeiramente" magoada.
"Já vimos bem pior. Braços e pernas partidos, uma gaja apareceu-nos aqui toda desfigurada. Jesus, até fazia impressão olhar para a rapariga. De certeza que tão cedo não arranja namorado", disse o polícia, desvalorizando explicitamente o meu caso e as minhas queixas.
"De certeza que não fez nada para enervar o rapaz? Sabe que às vezes um homem não é de ferro e vocês, mulheres, são capazes de nos levar à loucura", prosseguiu o agente, com um risinho que não fui capaz de ignorar. Levantei-me da cadeira onde estava a responder à condenação e apliquei no agente todo o ódio e revolta que sentia pelo homem que me bateu. Agarrei no pisa-papéis de vidro maciço que estava pousado na secretária do bófia e atirei-lho à cabeça.