“O que podem as artes e a cultura fazer pela educação e a democracia?” Estes jovens têm algumas respostas
Conferência Youth-Action-Culture reuniu cerca de 700 estudantes e profissionais do ensino e das artes nas Caldas da Rainha. Juntos, constroem o futuro da democracia cultural.
Em cima do palco do Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha estão mesas de sala de aula, umas junto às outras, com três candeeiros que iluminam o artista Carlos Bunga e as alunas de artes plásticas da Escola Superior de Artes e Design (ESAD) Jade Nunes e Maria Couto. Atrás deles estão cacifos com tags que são simbólicos para quem os está a ouvir, do lado da plateia: é que a conversa que vão ter ali provavelmente seria demasiado desarrumada para ter espaço numa sala de aula. Mas não é por isso que dá pistas menos importantes para pensar o mundo.
Foi nesta cidade que Carlos Bunga começou o seu percurso como artista. Quando recebeu o aviso de que tinha entrado na universidade, lia-se à frente: “Instituição: ESAD – Caldas da Rainha.” “A universidade, de repente, era como um monstro”, partilha com a plateia composta que tem perante si. Depois da euforia da entrada, chegou o receio de não conseguir frequentar as aulas por todas as despesas que estudar no ensino superior implicaria; até perceber que ia conseguir apoio. Aí, chegou o alívio e permitiu-se sonhar. “Eu cresci com a geração à rasca, alguém sabe o que é?”, pergunta o artista. No grupo intergeracional que tem à sua frente, há um consenso em quem o ouve. Todos parecem saber do que fala.
Sentados no auditório estão professores portugueses e estrangeiros, do ensino básico, secundário e superior, directores de escolas, profissionais de serviços educativos de equipamentos culturais, estudantes do 3.º ciclo e do ensino universitário, portugueses e estrangeiros, investigadores e artistas. A plateia compôs-se para a conferência Youth-Action-Culture, promovida pelo Plano Nacional das Artes, por onde passaram cerca de 700 pessoas nesta segunda-feira, 13 de Novembro.
Graças ao terceiro encontro anual de estudantes da RUN – Regional University Network, que este ano decorre no Instituto Politécnico de Leiria, ouvem-se várias línguas pelos corredores — há alunos que vêm de sete países. Há também uma forte presença de alunos da ESAD, instituição parceira do evento, que teve participação de alunos dos cursos de Artes Plásticas, Produção e Programação Cultural e Design Gráfico.
Jade Nunes, que durante a parte da manhã do primeiro dia conversou com Carlos Bunga, fez parte da comissão científica que preparou o evento, depois de ter sido convidada pela ESAD. A estudante de Artes Plásticas de 21 anos diz que as questões levantadas pela conferência premeiam a sua vivência: “Qual é o meu lugar nas artes e na cultura em Portugal? Enquanto artista penso nisso regularmente e é algo que condiciona e também influencia aquilo que produzo artisticamente. E o que é que as artes e a cultura podem fazer para a educação e a democracia? Acho mesmo que as artes e a cultura são um território de emancipação e é importante, para mim, fazer parte dessa conversa activamente.”
Que o país caminhe “para um lugar em que todas as vivências são ouvidas e todas as dissidências, todas as pluralidades de experiência são valorizadas da mesma maneira” é o que Jade deseja. E, nesta conferência, a sua opinião é tão válida quanto a de qualquer outro artista ou professor com mais anos de experiência. Youth-Action-Culture surgiu da vontade de ouvir o que os jovens têm a dizer sobre a cultura do seu território, como têm acesso a ela e o que gostariam que fosse diferente. Depois de ter construído a Carta do Porto Santo, um “instrumento político” que traça directrizes para o presente e o futuro da democracia cultural, a equipa do Plano Nacional das Artes procurou as vozes dos mais novos para criar uma adenda para esta carta tendo em consideração as suas demandas.
“Pensámos que devíamos fazer uma conferência em que esta geração é a base. Foi assim que criámos uma comissão científica com várias organizações que aderiram de imediato à ideia de criar um projecto intergeracional de cidadania cultural. Fazer nas Caldas foi muito óbvio; queríamos fazê-lo numa cidade em que se sentisse este pulsar de uma vida jovem e com uma liberdade até pela forma como expressam a sua identidade no espaço público”, conta a subcomissária do Plano Nacional das Artes, Sara Brighenti.
Processo participativo para pensar a democracia cultural
Para a construção da adenda foi feito um processo de auscultação, que consistiu num workshop, cujos resultados serão apresentados no segundo e último dia da conferência, 14 de Novembro. Fizeram parte deste processo grupos com jovens entre os 16 e os 25 anos, naturais de Portugal, da Eslovénia, da Polónia e da Ucrânia. Iara Varela, de 19 anos, fez parte de um dos grupos de Lisboa, reunido pelo festival Iminente, e conversou com o PÚBLICO dias antes da conferência para partilhar a sua experiência. Numa chamada telefónica a caminho do treino de futebol, a jovem do Bairro Quinta Grande, no Lumiar, partilhou que fazer parte desta experiência foi “surpreendente” porque percebeu que há mais pessoas com uma visão do mundo próxima da sua, na zona em que vive.
Sobre o acesso à cultura em Portugal, é peremptória: “Este ano, a inflação das coisas está tão alta... tudo isso implica que não tenhamos condições para ir ao teatro ou a um evento desportivo, temos de andar a trabalhar para conseguir sobreviver.” Iara diz que gostava que o Estado investisse mais no acesso à cultura através da criação de apoios para pessoas que, como é o seu caso, não tenham tanta disponibilidade financeira para pagar um bilhete para ir a um espectáculo.
Além da sessão de Iara, em Portugal, decorreram mais três: uma no Liceu Camões, em Lisboa, outra em Paredes de Coura e uma última nas Caldas da Rainha. António Pinto, jovem artista de 23 anos, fez parte do grupo “do Camões” e as reflexões que viu à saída foram outras: “Falámos muito sobre a cultura ter que ver com herança, seja pessoal ou da nossa nacionalidade.” Dessa reflexão maior sobre o que entra no conceito de cultura, surgiu uma preocupação sua. António sente que se valoriza cada vez menos “a cultura regional e local”, e que isso tem um efeito nas perspectivas de futuro de jovens artistas e na “diversidade de referências” de jovens espectadores.
Na sessão em Paredes de Coura, dinamizada em parceria com as Comédias do Minho, esteve Pedro Costa. Em 24 anos de vida, a cultura popular esteve sempre lá: “Os meus pais sempre foram bastante envolvidos no associativismo local e tudo o que fosse rancho, folclore, futebol. E quando eu era mais novo as Comédias do Minho, começaram a fazer programas nas férias de Verão e eu não tive opção senão ir”, conta ao PÚBLICO em tom de brincadeira. Como ávido espectador e dinamizador da cena cultural courense, Pedro deseja que mais produções artísticas relevantes possam passar pelo seu território. O que todos esperam é que quem tem o poder de decidir, mais do que ouvi-los, tenha em consideração o que querem já para o presente da cidadania cultural, não para o futuro. “Porque a cultura também é um garante da democracia”, relembra a subcomissária do PNA.
Ter dinheiro para aceder
No primeiro debate, muitas das preocupações de Iara Varela foram levantadas. As mesas de escola continuavam no cenário, mas agora menos alinhadas. Sentados em cadeiras ou mesmo em cima dessas mesas estavam os estudantes Willian Barros e Noa Brighenti, o activista Gil Ubaldo e Catherine Ritman-Smith, coordenadora de Educação e Envolvimento do Young V&A, em Londres. Falavam de igual para igual. Quem os ouvia tinha a sensação de estar numa conversa entre pares e não se coibia de ir trocando comentários sobre o que era dito.
“O que é que as artes podem fazer na educação pela democracia?” era a questão de partida, e Gil Ubaldo, que estudou Ciência Política e Relações Internacionais, fez questão de a ir relacionando com o contexto político e social português. “As rendas não param de aumentar, há cada vez mais pessoas em situação de sem abrigo”, disse a certa altura na conversa.
Já cá fora, explicou ao PÚBLICO que a instabilidade e a precariedade são “uma das grandes razões para as desigualdades” que existem no acesso à cultura — tanto para quem assiste, como para quem faz. “Como é que uma família de quatro pessoas consegue pagar oito euros por bilhete para ir ao MAAT? E como é que o MAAT, que era grátis nos primeiros domingos do mês, passou agora a ser grátis nos primeiros domingos do mês das 10h às 13h? Como é que tornamos os lugares ainda menos acessíveis?”, questiona.
Apesar de não ser artista, como grande parte dos jovens que organizaram o evento, tem preocupações sérias quanto ao presente e ao futuro dos trabalhadores da cultura em Portugal. Menciona a cultura de elite que sente que existe no circuito artístico, os salários precários, os falsos recibos verdes. “Como é que consegues perspectivar seguir um caminho que realmente te coloca numa insegurança económica grave? Há dez anos era a geração da minha irmã, agora é a minha”, diz Gil Ubaldo, de 23 anos.
Vinda da Áustria para o encontro da RUN – Regional University Network, Viktoriia Simakova, estudante de mestrado em Ciências Computacionais, diz que desde que chegou a Portugal já percebeu que “a vida económica lá é mais estável do que aqui”. Se tiver de analisar o acesso à cultura no seu país, defende que, apesar de haver algum apoio do Governo e bilhetes com preços reduzidos em determinadas instituições culturais, “depende muito da vontade pessoal de cada um”. Deste encontro nas Caldas da Rainha diz que leva “a ideia de que temos o poder de ser participantes activos no nosso dia-a-dia, no nosso futuro, e ter um impacto”. “É o maior feeling que tenho deste dia: que tenho poder, tenho uma voz.”
Do Centro de Congressos e Conferências das Caldas da Rainha, seguem todos para a ESAD. É por lá que a festa continua noite dentro com Marquise, DJ Princesa e DJ Atërg.