Escasseiam os "terceiros espaços" nos Estados Unidos, os lugares que não são a casa nem o local de trabalho, que proporcionam oportunidades de convívio com pessoas que não conheceríamos de outra forma e que não têm um custo de acesso elevado: o que em Portugal é o café da esquina, a associação do bairro ou o largo ajardinado no centro da aldeia, por exemplo.

A escritora Sheila Liming (que me deu uma entrevista que conto publicar brevemente) descreve o processo em Hanging Out, um livro-manifesto em defesa do "poder radical de passar o tempo" com pessoas que não conhecemos, fortalecendo as comunidades em que vivemos e enriquecendo-nos pessoalmente: os EUA assistem aos efeitos de uma crescente privatização dos espaços públicos, da falta de políticas de urbanismo que atira milhões de norte-americanos para bairros ultraperiféricos e totalmente habitacionais, da transformação das nossas vidas pela tecnologia, desde a migração de quase todas as nossas interacções para as redes sociais até aos headphones que nos encasulam, mesmo quando estamos rodeados de pessoas num ginásio.

Se os americanos estão cada vez mais sozinhos e desavindos, incapazes de dialogar com o "outro lado", isso também passa por este fenómeno.

Liming refere as bibliotecas públicas norte-americanas como um dos últimos "terceiros espaços". Contudo, estas estão sob ameaça, como a autora explica: num país com uma escassa oferta de serviços sociais, as bibliotecas estão cada vez mais transformadas em abrigos para quem dorme na rua e cada bibliotecário é também um assistente social, um psicólogo, ou mesmo um socorrista.

A biblioteca de Burlington, aqui no Vermont, é exemplo disso. Tem um enorme mas convidativo edifício, capaz de fazer inveja a qualquer universidade portuguesa, e um excelente catálogo de livros, multimédia, jogos e recursos educativos. Tem também às costas a incumbência indesejada de ser um local de resposta, na linha da frente, às várias crises que a cidade atravessa: da epidemia dos opióides à da habitação, passando pela falta de resposta para pessoas com problemas psiquiátricos. Os bibliotecários de Burlington tiveram de aprender sozinhos a prestar primeiros socorros a pessoas em overdose e, segundo o jornal local Seven Days, já tiveram de chamar a polícia à biblioteca mais de 130 vezes desde o início do ano.

E soma-se outra ameaça. As bibliotecas, tal como as escolas públicas, são cada vez mais outra das frentes das guerras culturais que grassam nos Estados Unidos, como explicou na semana passada John Oliver no seu Last Week Tonight (inteiramente disponível no YouTube).

Só em 2023, a Associação Americana das Bibliotecas registou tentativas para censurar 4240 obras, o maior número alguma vez registado no país. A retirada de livros acontece normalmente sob ameaça de bloqueio de financiamento por parte dos municípios, através da acção de grupos organizados, tendencialmente conservadores, nas assembleias locais. Na mira estão sobretudo títulos dirigidos a crianças que os críticos entendem ter teor sexual, e ainda iniciativas como sessões de leitura para crianças que envolvam pessoas LGBTQ. Mas também surgem movimentos de boicote, no campo progressista, à disponibilização de obras mais antigas cuja linguagem não se enquadra no padrão politicamente correcto actual.

Para enorme conveniência do leitor, grande parte das bibliotecas americanas têm hoje belíssimas plataformas online para aceder às versões digitais dos livros. É possível ir à biblioteca sem sair de casa. Ganha-se um enorme catálogo no telemóvel ou no computador, mas perde-se o cheiro dos livros e a possibilidade de uma conversa de circunstância com outro leitor ou com o bibliotecário.

Liming não oferece um remédio milagroso para reverter o desaparecimento dos espaços públicos e do convívio, mas identifica dois caminhos. O primeiro é o das políticas públicas, de pensarmos que cidades e países queremos e de investirmos na sua construção: mais praças e parques, mais bairros onde as pessoas possam não apenas dormir mas também socializar, mais espaços como bibliotecas, evidentemente. Requer consensos políticos, tão difíceis de alcançar. E dinheiro.

O segundo caminho, que não substitui necessariamente o primeiro, parte de nós: não desistir dos espaços que nos vão sendo retirados, como uma biblioteca, uma praça ou uma associação, nem de treinar a nossa capacidade de conversar e conviver com estranhos, tal como se exercita um músculo.

O contexto americano não é exactamente o mesmo que o português, mas o desafio é importável. Estamos quase a meio do ano, mesmo a tempo de escolher duas ou três resoluções para cumprir até 2025. Quando foi a última vez que foi a uma biblioteca?