É uma lenda, mas também é um espelho da realidade que se vivia na época. O Estado Novo tentou fazê-la desaparecer, só que a população de Gemunde fez frente à reacção e preservou-a desde o século XVIII até hoje. Na Maia, a poucos quilómetros do Porto, há um “santo” sem nome, não reconhecido pela Igreja, que tem uma sepultura feita em sua homenagem pelos moradores. Junto à antiga Estrada da Senhora da Hora sobrevive a memória de um período em que a escravatura fazia parte da estrutura piramidal da sociedade portuguesa. Na base estava quem não tinha direitos. No topo estavam os mais privilegiados.
Reza a lenda que, a dada altura, nas Terras da Maia, um representante dos primeiros, para defender outra pessoa, enfrentou o poder. O fim dessa história não teve o melhor desfecho para quem deu esse passo de coragem. Mas a população local não esqueceu esse alegado acto de bravura e assumiu-o como parte de uma luta de classes na qual se revia. Porque era um escravo, sem direitos, também não teve direito a ser conhecido pelo nome próprio. Mas a lenda perdura no tempo. O espírito de resistência do “Santo Preto” vive em Gemunde, na Campa do Preto.
Uma cruz enfeitada com dezenas de terços, algumas velas de cera e dois arranjos de cravos pousados numa placa de granito protegida com um gradeamento metálico — este é o único jazigo que existe junto à Rua do Engenheiro Frederico Ulrich, em Gemunde, agora parte da freguesia de Castelo da Maia, e está em lugar de destaque. É a Campa do Preto, nome pelo qual também é mais comummente conhecido aquele aglomerado residencial desta freguesia da Maia. O topónimo não-oficial foi escolhido informalmente pela população local e assinala a narrativa da lenda.
A lenda
Diz-se por ali, e guardam os arquivos que preservam esta história efabulada, que no final do século XVIII, em Guilhabreu – agora é Vila do Conde, na altura fazia parte das Terras da Maia –, um “fidalgote” se interessou por uma donzela “aldeã de rosto formoso”, com “longas tranças” e olhos “castamente baixos”. Um dia, no seu solar, o fidalgo tentou seduzi-la. Porém, a jovem não estava receptiva aos seus avanços. O fidalgote, não respeitando a sua vontade, “tentou violentá-la”. Mas a donzela conseguiu escapar e escondeu-se no meio de uma seara.
O fidalgo não desistiu. Só que o plano passou a ser outro. Chamou alguns criados e um escravo e ordenou-lhes que fossem incendiar a seara. Desse grupo, alguém se recusou a obedecer. O homem escravizado apagou um archote que segurava numa das mãos e garantiu que uma parte da seara ficasse sem fogo. A donzela conseguiu escapar por ali.
O fidalgo ficou indignado com o acto do homem e quis puni-lo. Pediu que fosse preparar um cavalo e que amarrasse uma ponta de uma corda à sela e a outra ao seu pescoço. Depois disso, seguiu em direcção à Senhora da Hora, pela estrada com o mesmo nome, que acabava no Porto. Amarrado, o homem escravizado foi sendo arrastado pelo caminho. Enquanto isso, o fidalgo ia espicaçando o cavalo para aumentar de velocidade. O homem acabou por morrer, e, aos poucos, o corpo foi-se despedaçando.
Já perto de Gemunde, a população que ali vivia, indignada com a situação, foi-se “amotinando” e perseguindo o “fidalgote assassino”. Pelo caminho, iam recolhendo os restos mortais que ficavam para trás, despedaçados. Já em Gemunde, a cabeça do homem soltou-se da corda que estava amarrada ao cavalo. Foi ali, de acordo com a lenda, que, na altura, a população enterrou os pedaços do corpo.
Nasce assim o mito que remonta ao século XVIII. Porém, o jazigo que agora existe data de 1883, um século depois – o ano da sua construção está cravado na cobertura do mausoléu, uma oferenda dos pescadores de Matosinhos, que ainda hoje tem membros da comunidade que prestam culto ao “santo”.
Na verdade, esta designação não é reconhecida oficialmente. “Chamamos-lhe o Santo Preto, mas ele não é santo. Não foi reconhecido pela Igreja porque quando se passou a história ele era escravo. Era racismo. Ele não tinha os mesmos direitos que tinham os brancos, na altura”, afirma Jorge Cruz, presidente da Associação Beneficente da Campa do Preto há quase 20 anos, que recebeu o PÚBLICO na sede da associação.
Essa circunstância acabou por ser crucial também para o facto de o “santo” não ter nome. “Ficou conhecido como Santo Preto”, sublinha. Também foi por isso que durante anos se tentou acabar com o culto em causa. Durante a ditadura, “queriam apagar a lenda”. Antes disso, a Igreja, recorda, também tinha tentado o mesmo. A determinada altura, uma comissão foi ao local para verificar se existiam na sepultura restos mortais. Não os encontraram e, anos mais tarde, alguém justificou que a sepultura estava uns metros mais ao lado, onde agora está o jazigo. Por isso, em 1932 foi criada a associação que dirige, para que a lenda fosse “protegida”.
Todos os anos, no primeiro domingo de Junho, celebra-se uma grande festa popular em honra do “santo”. Para manobrar a ditadura, a celebração chamava-se – ainda hoje é assim – Festa das Cerejas. “É a única festa pagã do país”, atira, remetendo para o facto de não ter existido um processo de canonização.
Viajando no tempo, Jorge Cruz diz que ao longo dos anos existiram bandas filarmónicas que actuaram nas festas que foram excomungadas e lamenta que só “há cerca de seis anos” é que o bispo do Porto se tenha deslocado ao local.
Sobre os milagres do “santo”, sem afirmar que existem ou não, sublinha a curiosidade de, durante a Guerra do Ultramar, não ter havido mortes entre os soldados que saíram de Gemunde. “Foi a única freguesia da Maia sem mortos”, garante. Também há quem garanta que quem ali vai, se disser as palavras certas, fica sem cravos nas mãos – daí as flores escolhidas para serem depositadas na campa serem cravos.
Durante a semana não há muito movimento junto à campa. Ao fim-de-semana, afirma, há “uma ou outra pessoa” que lá vai com regularidade. As multidões só existem por altura da festa que a associação organiza todos os anos, com orçamento que advém quase todo de acções de angariação de fundos em Gemunde.
Lenda e realidade
Sobre os pontos de contacto que existem entre a lenda e a realidade, o historiador e arqueólogo Joel Cleto opta por deixar o lado mítico e místico de parte para se focar no espelho que a narrativa traça da época. “No meio desse monte efabulado, desse mundo fantástico e, muitas vezes, pouco credível, que existe nas lendas, há sempre algum fundo verdadeiro. E é por isso que os historiadores e os arqueólogos, mesmo sabendo tratar-se de lendas, lhes costumam dar uma grande atenção”, afirma, remetendo para a nova historiografia do século XIX e para escritores românticos como Alexandre Herculano e Almeida Garrett.
O historiador confirma que, durante largos anos, a Igreja e o Estado Novo tentaram apagar o mito: “A Igreja não só nunca aceitou, nunca reconheceu o culto, como durante muito tempo o combateu.” Mas, assinala, a resistência da população não deixou que isso acontecesse. Citando o etnógrafo Augusto César Pires de Lima, afirma: “O caso do Santo Preto é um daqueles casos, como temos outros, do fenómeno que é a canonização popular.”
Na lenda da Campa do Preto salienta a existência de algo que acredita que se quis apagar com o passar do tempo. “A partir do século XIX, tentamos, de algum modo, ir escondendo ou fazendo por esquecer a presença de escravos na nossa sociedade. Hoje, quase que nos esquecemos que, durante alguns séculos, os escravos eram uma presença permanente e visível da nossa sociedade. Só que depois, a partir do século XIX, parece que quisemos passar uma esponja e esquecer. Fala-se da escravatura no Brasil, em África, mas até parece que não havia escravos [em Portugal]”, assinala.
Porque era “um escravo negro”, afirma, “nem sequer houve o cuidado em se registar o nome”. “O Santo Preto é um indício da presença de escravos e da forma como muitos os tratavam. Enfim, de forma muito pouco digna”, remata.