4.0
Um manifesto para esquecer
Uma newsletter de João Pedro Pereira sobre inovação, tecnologia e o futuro.
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Há duas coisas pelas quais podemos estar gratos ao multimilionário Marc Andreessen: a invenção, há 30 anos, de um programa de computador importante na disseminação da World Wide Web; e a publicação recente de um manifesto que tem a virtude de encapsular ideias pouco sustentadas e que pululam numa certa bolha das tecnologias de informação.
Passemos pelo primeiro episódio.
Andreessen estudava informática na Universidade de Illinois quando experimentou a Web, acabada de ser tornada pública pelo cientista Tim Berners-Lee. Percebeu o potencial da tecnologia e criou o Mosaic, um navegador de páginas Web, que lançou em 1993. O Mosaic tornou-se o primeiro navegador gráfico de sucesso, precursor de navegadores como o Chrome ou o Safari. Uma das novidades era a possibilidade de visualizar páginas que tivessem texto e imagens em simultâneo. Outra era a navegação com o rato.
À distância, pode parecer coisa pouca, mas não foi. A revista Wired titulou sobre o Mosaic: "Começou a (segunda fase da) revolução". O navegador deu origem ao Netscape, que foi durante alguns anos o navegador dominante, até que o Internet Explorer, da Microsoft, conquistou o mercado.
Entre outras peripécias que se seguiram, Andreessen criou uma empresa de software na cloud muito antes de o termo ser moda. Vendeu-a por vastos milhões e, em 2009, fundou uma influentíssima firma de capital de risco. Na lista de empresas que financiou estão o Facebook, o Instagram, o Airbnb e a Coinbase, uma plataforma de criptomoedas hoje cotada no Nasdaq.
Andreessen não tem a fama de Bill Gates, ou sequer dos seus contemporâneos dos primeiros tempos da Web, como Larry Page ou Sergei Brin, fundadores da Google. Mas gere os milhões necessários para fazer acontecer empresas que ajudam a moldar o mundo. Não é uma personagem anódina.
Há alguns dias, publicou O Manifesto Tecno-Optimista. É uma leitura longa e penosa.
Apesar disso, vale a pena mergulharmos aqui no texto. Não porque seja convincente ou bem articulado, mas precisamente pelo contrário: o estilo de frases soltas e a argumentação simplista são o retrato dos círculos de pensamento onde este optimismo irreflectido encontra acolhimento. O manifesto de Andreessen é uma espécie de post do LinkedIn elevado ao expoente de um multimilionário. Começa com a frase "Estão-nos a mentir."
A mentira, diz Andreessen, é sobre os impactos negativos da tecnologia. É sobre os riscos associados ao emprego, às desigualdades, à saúde, ao ambiente. O motivo por que estas preocupações são mentirosas é, para o autor, uma espécie de auto-evidência:
"A tecnologia é a glória da ambição e dos feitos humanos, a lança do progresso, e a realização do nosso potencial. (...) ."
Podemos avançar para uma forma muito superior de viver e de ser.
Temos as ferramentas, os sistemas, as ideias.
Temos a vontade.
É tempo de levantar, de novo, a bandeira da tecnologia."
Andreessen não gosta que, nos últimos anos, a tecnologia tenha perdido a aura salvífica. Depressa dá o salto para o tecno-solucionismo: "Acreditamos que não há nenhum problema material – criado pela natureza ou pela tecnologia – que não possa ser resolvido com mais tecnologia." É conhecida a obsessão de alguns vultos de Silicon Valley em resolver tudo, incluindo a sua própria mortalidade.
Vêm depois exemplos de problemas resolvidos, entre os quais este: "Tínhamos um problema de isolamento, por isso inventámos a Internet". De todas as pessoas que escrevem manifestos, Andreessen tinha obrigação de não ter falhado factualmente este: a Internet foi inventada em 1969, durante a Guerra Fria, quando os EUA queriam uma forma de comunicação resistente a ataques militares.
Continua: "Temos um problema de pobreza, por isso inventámos tecnologia para criar abundância." É o tempo verbal certo: "Temos um problema". Muitas tecnologias, a começar pelas agrícolas, ajudaram a criar abundância. Mas, por si só, não resolvem os problemas – o manifesto não diz muito sobre a questão espinhosa de gerir as tecnologias criadas e distribuir os seus dividendos.
Também não faltam passagens de ambição desmedida: "Dêem-nos um problema do mundo real, e podemos inventar tecnologia que o vai resolver." Aceitamos o desafio. Problema: conflito israelo-árabe. Resolvam, nós esperamos.
O manifesto é abundante na defesa de mercados não regulados, entre outras razões porque "os mercados previnem monopólios e cartéis". (E inclui uma diatribe contra as economias de planeamento central, cuja motivação seria mais fácil de compreender se estivéssemos em 1988.)
Não há espaço na "tese" de Andreessen para considerandos humanistas. A democracia tem direito a um único parágrafo, para dizer que as democracias que não dominam a tecnologia são fracas quando comparadas com autocracias (o que é verdade, é por isso que os EUA estão a limitar a exportação de tecnologia para a China).
Sobre o rendimento básico universal, escreve que "transformaria as pessoas em animais de zoo, para serem criados pelo estado". Seria um problema porque "o Homem foi criado para ser útil, para ser produtivo, para ser orgulhoso" (os itálicos são do original).
Sobre a inteligência artificial, defende que colocar-lhe travões é "uma forma de homicídio", porque esta será capaz de salvar vidas. "Acreditamos que a Inteligência Artificial é a nossa alquimia, a nossa pedra filosofal – estamos literalmente a fazer a areia pensar." Andreessen estará a referir-se à areia que é matéria-prima dos chips. Literalmente, ninguém está a fazer a areia pensar. Mesmo figurativamente, é dúbio.
O infinito é o único limite aceitável para esta versão de tecno-optimismo: "Acreditamos que devemos colocar a inteligência e a energia num ciclo de reforço positivo, e conduzi-los a ambos até ao infinito. Acreditamos que devemos usar o ciclo de reforço da inteligência e da energia para tornar abundante tudo aquilo que queremos e de que precisamos". Mais adiante: "Acreditamos em tornar toda a gente rica, tudo barato, e tudo abundante." Uma entrega da Uber de cada vez, é caso para acrescentar.
Por aqui, acreditamos simplesmente que escrutinar ideias publicadas por pessoas influentes é um exercício útil. O texto já motivou uma saudável dose de réplicas, incluindo de tecno-optimistas de outra estirpe. Para o problema de desmontar manifestos falhos a Internet é uma solução muito eficaz.
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