Cátia Reis: “A nossa fisiologia responde ao sol, não ao relógio de pulso”
Cientistas defendem que hora de Inverno se deveria manter o ano inteiro. “Aquilo de que necessitamos e que é desejável é que estejamos perfeitamente alinhados com a hora solar”, afirma especialista.
A hora muda neste fim-de-semana, mas a comunidade científica há muito tem defendido que a permanência na hora de Inverno seria o ideal e o mais saudável — ainda que a percepção do público pareça ser outra. A especialista na área do sono e ritmos biológicos Cátia Reis reconhece que a mudança da hora é um tema sensível, mas defende que permanecer sempre na hora de Verão teria impactos negativos, sobretudo pela ausência de luz pela manhã.
“Temos de pensar acima de tudo naquilo que é melhor para a nossa fisiologia. Vários estudos já demonstraram evidências nos problemas que advêm do facto de nós retirarmos a luz de manhã”, refere a investigadora do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes da Universidade de Lisboa e professora auxiliar na Universidade Católica Portuguesa. Em entrevista com o PÚBLICO por videochamada a partir do Rio de Janeiro, onde se encontra para participar no Congresso Mundial do Sono, garante: “Temos níveis de privação de sono muito superiores a outros países e se mantivermos a nossa hora de Verão ainda vamos piorar a situação.”
Considera que existe uma diferença entre a preferência dos cidadãos e aquilo que defendem os cientistas no que toca à mudança da hora?
Eu penso que existe uma percepção errada. A pessoa tem uma tendência para, naturalmente, gostar mais da hora de Verão do que da hora de Inverno. Mas isto tem que ver com a sazonalidade que temos: o nosso fotoperíodo [tempo de luz solar] naturalmente é maior durante o Verão e é menos durante o Inverno. Ponto. Independentemente de haver mudança da hora ou não.
As pessoas gostam de ter luz e de ter luz ao fim do dia, mas o problema é que a questão de termos a luz ao final do dia em termos fisiológicos não é muito desejável. Basicamente, temos o nosso período endógeno, a nossa ritmicidade endógena, a nossa fisiologia é de cerca de 24 horas. Em média, é superior às 24h e nós precisamos da luz no período da manhã para conseguir sincronizá-la.
No Inverno, como temos menos horas de luz, convém que consigamos ter algumas horas de luz no período da manhã para despertarmos. Aquilo de que nós necessitamos e que é completamente desejável é que nós estejamos perfeitamente alinhados com a hora solar. Porque a nossa fisiologia responde ao sol, não responde ao relógio de pulso. O relógio de pulso ajuda a saber quando temos de ir trabalhar, mas fisiologicamente o nosso organismo responde ao sinal luminoso, à sua presença ou à sua ausência.
E quais são os malefícios de não ter essa luz pela manhã?
São precisamente esses: não tendo essa luz de manhã para sincronizar, faz com que sejamos mais tardios. Levantamo-nos de manhã ainda de noite e ficamos dentro de edifícios em que a iluminação não é a mesma que a luz exterior, é mais reduzida. Acabamos por nunca ter a luz no período do dia que nos permite ficar mais matutinos.
Nós, portugueses, já temos essa tendência para ser mais tardios. Se ainda formos colocar mais horas de luz no final do dia, vai fazer com que fiquemos mais tardios — mas a hora de relógio é a mesma, não muda. O que muda é a hora na qual nos estamos a expor à luz. Por isso é que, no Verão, dormimos menos, por norma. E as pessoas que são mais noctívagas ainda dormem menos. Há um arrastamento da hora de adormecer, mas depois de manhã acordam para ir trabalhar. No Inverno, tendencialmente dormimos mais.
Então qual é a solução preferível em termos de ciência do sono e saúde?
A melhor solução e aquela que nos permite ter o horário social mais próximo da hora solar (que é aquela que nos sincroniza) é precisamente ficar permanentemente na hora dita de Inverno.
Claro que quando se pergunta às pessoas respondem normalmente que preferem a hora de Verão porque associam ao Verão. Associam a um fotoperíodo maior. Se ficarmos com a hora de Inverno, chega ao Verão e não temos luz até às 22h da noite, mas também não precisamos de ter. Porque faz com que vamos dormir ainda mais tarde. Se tivermos luz até às 21h da noite, é perfeitamente aceitável. Mas, se ficássemos com a hora de Verão no Inverno, às 9h e tal da manhã ainda seria de noite. E isso sim, é altamente prejudicial. Nós precisamos mesmo é de ter aquela luz.
Ser de noite até tão tarde de manhã poderia ser mais prejudicial para algum grupo, como as crianças?
Sim, as crianças são particularmente sensíveis. Publiquei um artigo com pessoas que têm uma patologia do sono que é atraso de fase de sono, que são pessoas que se deitam muito, muito tarde e que se levantam também muito, muito tarde, de forma sistemática, e para essas pessoas é ainda pior. Ainda corta mais o sono delas.
As pessoas que estão em maior risco são precisamente aquelas que são mais tardias. Quais? Os nossos adolescentes, que ainda por cima têm de ir para a escola às 8h da manhã. Nada podia estar mais errado.
Se nos mantivéssemos sempre nesta dita hora de Inverno haveria algum impacto no Verão?
Não.
Seria só uma questão de hábito?
Iria ser completamente uma questão de hábito. O nosso organismo vai adaptando-se à exposição luminosa e a esta sazonalidade. Na Primavera os dias começam a ficar maiores e no Outono começam a ficar mais curtos, e o nosso organismo responde naturalmente. O que acontece é que, artificialmente, fazemos mudar uma hora.
Há pessoas que argumentam que é bom ao final do dia, no Verão, sair. Mas temos de pensar acima de tudo naquilo que é melhor para a nossa fisiologia. Vários estudos já demonstraram evidências nos problemas que advêm do facto de nós retirarmos a luz de manhã, nomeadamente.
Na pandemia, todos ficámos mais tardios porque não tínhamos tanto contacto com a luz lá fora, tínhamos uma menor luminosidade exterior. É por isso que isto em termos de opinião pública muitas vezes é discordante e levanta várias questões, porque muitas pessoas dizem que só ao final do dia é que podem efectivamente apanhar luz. Mas também nos cabe a nós tentar mudar gradualmente alguns destes hábitos. Nem sempre é fácil.
Esta passagem que vamos ter agora é benéfica, ganha-se uma hora de sono. Em Março é que é altamente prejudicial porque estamos a tirar uma hora, a fazer-nos acordar uma hora mais cedo do que aquilo a que o nosso organismo estava a responder.
Quem acha que deveria ter a última palavra sobre a mudança da hora? Deve ser o Governo apoiado por cientistas ou devem ser as pessoas?
Deve ser o Governo apoiado por cientistas, e depois tem de haver educação. O problema que temos muitas vezes é as pessoas não saberem em termos fisiológicos e em termos práticos quais é que são as consequências e tomam decisões desinformadas. O exemplo do tabaco é um exemplo bom.
Na questão do sono, os impactos são desvalorizados?
Sim. Há pessoas que ainda acham que dormir é uma perda de tempo. A questão é que não é. Toda a nossa fisiologia e toda a nossa performance cognitiva em geral são completamente impactadas pelo défice de sono. A relação emocional é completamente impactada pela privação de sono.
E a longo prazo também…
Sim. Aliás: os efeitos mais facilmente percepcionáveis e que todos conseguimos ver são alerações cardiometabólicas, são aquelas que acabam, por norma, por vir sempre ao de cima.
E depois também temos as perturbações de humor. Na nossa sociedade portuguesa temos taxas elevadíssimas de depressão. Como é que é possível? Quando estamos a competir com países da Europa do Norte, que não têm tanta luz... Há coisas que não estão a funcionar bem e acho que uma dessas coisas deve ser a privação do sono. Temos níveis de privação de sono muito superiores a outros países. E se mantivermos a nossa hora de Verão ainda vamos piorar a situação.
Portanto, na sua visão, não faz sentido mudar a hora duas vezes por ano?
Não. O ideal seria termos sempre uma hora mantida o ano inteiro, o ideal é a hora standard, de Inverno. Na impossibilidade de isto acontecer, se realmente não der, então manter a alternância. É preferível do que ficar na hora de Verão.