Uma fotógrafa em busca de memórias para os bebés “sem passado” da Roda do Porto

Durante séculos, as “rodas dos expostos” acolheram bebés em todo o país. Felícia Oliveira vasculhou o arquivo portuense e devolveu a memória possível aos enjeitados com uma exposição de fotografia.

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Fotógrafa de 23 anos fez exposição sobre a Casa da Roda do Porto Felícia Oliveira
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Num lugar cheio de passado, Felícia Oliveira sentiu a falta dele. Se os 181 metros lineares de arquivos da Casa da Roda do Porto podiam traçar “percursos burocráticos” da vida de muitas crianças lá abandonadas, eram insuficientes para retratar o mais indizível, mas não menos relevante, da história delas. Ao vasculhar os documentos no Arquivo Distrital do Porto (ADP), impunha-se uma pergunta no pensamento da fotógrafa: “O que sentiram e viveram, realmente, as crianças expostas”?

A “inquietação” inspirou o título da exposição de fotografia que está no ADP até ao dia 27 de Outubro e que no dia 28, pelas 15h, é mote de uma conversa no Mira Fórum. Chamar ao projecto Sem Passado pareceu contraditório a uma arquivista da casa (“Como assim, Sem Passado, se estamos num sítio cheio dele?”), mas reproduziu com rigor o sentimento de Felícia: “Não me conseguia ver nessa posição de chegar à vida adulta e perceber que não tinha um passado. Não saber quem eram os meus pais, irmãos, avós.”

Para a fotógrafa de 23 anos a memória é coisa muito séria. Ainda aluna de escola secundária, já fazia pesquisas genealógicas com a ajuda do pai. Cerzir a história da família – já chegou ao trisavô – não é apenas conhecer pretérito, é também olhar para dentro: “Sinto que vivo da minha memória. A minha identidade está muito articulada com a minha herança. Se de repente me visse privada disso, seria muito mais incompleta.”

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Projecto Sem Passado integra mestrado de Felícia Oliveira e concretizou-se numa epxoisção de fotografia, num livro e num filme Nelson Garrido

Há uns anos, numa visita ao edifício do ADP, na Rua das Taipas, soube da existência daquele arquivo, retrato de um tema sobre o qual sabia o básico: as casas da roda, instituições existentes em várias cidades do país (e além dele) até ao século XIX, acolhiam bebés que as famílias não podiam, ou não queriam, criar. A empatia foi imediata. E a “semente” ali lançada revelar-se-ia há cerca de um ano, quando buscava tema para o mestrado em comunicação audiovisual: fotografia e cinema documental, na Escola Superior de Media, Artes e Design do Instituto Politécnico do Porto.

Entre a imensidão de arquivos da Casa da Roda do Porto, fundada em 1689, durante o reinado de D. Pedro II, Felícia Oliveira focou-se nos sinais. Fios, contas, retalhos de tecido, rosários, crucifixos, escapulários, cabelos, medalhas, flores. Os bebés deixados no cilindro giratório, quase sempre no silêncio e anonimato da noite, levavam muitas vezes algum desses objectos (e também bilhetes). Os sinais atavam laços com o passado e era provas de ADN num tempo em que a ciência ainda não as inventara: se um dia a família desejasse reencontrar o filho ou filha, era através deles (e dos contra-sinais guardados por si) que provaria a ascendência.

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Projecto Sem Passado vai ser apresentado no Mira Fórum este sábado Felícia Oliveira

Para Felícia Oliveira, sobressaiu a “dicotomia”. Se os sinais eram prova de abandono, ferida aberta e memória da dor, eram também testemunho de um passado e réstia de esperança num encontro futuro. “Essa quase crueldade e, ao mesmo tempo, o resquício de um laço” cabem nas fotografias da exposição, no livro (edição de autor que Felícia deseja publicar um dia) e também no filme de seis minutos que vai passando em loop na sala.

O posicionamento foi definido desde o início. Felícia não queria usar a fotografia como janela, reproduzindo os sinais da forma mais objectiva possível (até porque esse trabalho já está feito e pode ser consultado online). “A minha interpretação devia ser visível, não queria ser transparente. Daí assumir as minhas mãos, por exemplo”, explica.

Algumas fotografias assumem um lado mais “fantasmagórico” inspirado pelo tema, jogam com as sombras, com a luz, com a cor. Há duas cartas, seis de ouros, sinal de uma menina chamada Jerónima. Há documentos agarrados com luvas, raio-X de sinais e bilhetes que conferem várias camadas ao assunto.

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Arquivo Distrital do Porto tem mais de 500 sinais e Felícia focou-se em 22 deles Felícia Oliveira
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Sinais deixados pela família eram a única forma de poderem recuperar os filhos mais tarde Felícia Oliveira

Numa fotografia, a mão de Felícia agarra uma fita vermelha, qual “cordão umbilical de tecido, como se puxasse o primeiro fio de toda esta meada do arquivo da Roda do Porto”. Entre centenas de sinais do arquivo, seleccionou 22 e focou a atenção no vermelho, deixando a simbologia da cor fazer o seu caminho: o vermelho do sangue que dá vida, do parto, ligado à genealogia, mas também o vermelho como a primeira cor percebida por um bebé, o vermelho do sangue derramado e da morte.

A luz é também essencial, vai dizendo enquanto guia o PÚBLICO pela exposição. Após a entrada dos documentos na Rua das Taipas, em 2010, graças a um projecto do ADP financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, o arquivo raramente foi aberto. Há sobre ele um projecto fotográfico (Sobre Expostos, de Helena Flores) e um vídeo (de Pixbee, acompanhando a abertura dos arquivos pelo ADP), mas a oportunidade de fotografar de novo os documentos era também uma vontade de “trazer os sinais para a luz”: de forma mais metafórica, abrindo portas para o seu conhecimento, e também real, usando os corredores do arquivo para fotografar com luz natural e permitindo até que o edifício incorporasse as imagens, através das sombras das grades das janelas, por exemplo.

Enquanto avançava no projecto, Felícia juntava mais elementos aos do ponto de partida – os sinais. Os livros onde se registavam as entradas e saídas das crianças, as medalhas identificativas no interior da casa e os seus marcadores, alguns espaços do próprio arquivo, dois espaços exteriores (a roda da Igreja de Santa Clara, destinada à entrega de bens alimentares e doações às freiras; e a roda de Belmonte, Caria).

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Arquivo da Casa da Roda do Porto está no Arquivo Distrital do Porto desde 2010 Felícia Oliveira

Imaginar histórias

Em busca de “uma nova luz sobre os sinais dos enjeitados”, a estudante conduz uma reflexão sobre o passado de milhares de crianças entregues na roda e tenta “conferir-lhes uma história”. Do arquivo não fazem parte fotografias dos meninos e meninas ali deixados, mas os documentos permitem “imaginar vidas, gestos e emoções” e, dessa forma, “imaginar também rostos ficcionais”.

A necessidade de ter o elemento humano no projecto surgiu numa apresentação em Viana do Castelo. Depois de ver o trabalho de Felícia, um investigador opinou: apesar do esforço dela, as crianças continuavam a ser demasiado “espectrais”. “Depois disso pensei que não podia ficar só pelos sinais”, recorda. “Não podíamos chegar a um ponto de indiferença, de olhar para os objectos sem pensar nas vidas por detrás deles.”

Assim foi parar ao arquivo do Centro Português de Fotografia. Com imagens reais de crianças, procurou “anular a ausência” das crianças reais. Testou sobreposições digitais dos rostos nas suas fotografias; depois levou-as impressas e expô-las no próprio ADP; por fim projectou-as nas salas de arquivo. Sempre desfocando as caras ao ponto de não serem identificáveis. “Se pensarmos que cada objecto pertenceu a uma criança, que tinha um rosto, sentiu, sofreu e teve sonhos, não ficamos indiferentes.”

O resultado desse ensaio pode ver-se no filme, antídoto para o “esquecimento”. Ouve-se o som de um sino (gravado por Felícia em Belmonte) e imagina-se uma mãe a tocá-lo depois de deitar o seu bebé na roda. Uma despedida. Imagina-se o cilindro a rodar e, dentro da casa, a ama-de-leite a recolher o bebé. Muitas vezes, chegados já combalidos, morriam-lhes nos braços. Quem sobrevivia era depois entregue a uma família ou às chamadas “amas de fora”.

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As Casas da Roda, existentes em várias cidades até ao século XIX, acolhiam bebés de famílias que não as podiam, ou queriam, criar Felícia Oliveira

“Há-de ser procurada”

“Aí vai uma menina que se chama Maria Luísa.” Começa assim o bilhete de uma mãe ou pai cuja dor transparece. Foi a 19 de Maio de 1826, poucas horas depois de, na mesma roda, ter sido recolhido “um cadáver envolto num trapo de paninho”, lê-se num relatório de admissão dos expostos, as chamadas “partes da directora”, escritos todos os dias pelas responsáveis da Casa da Roda, e que também podem ser vistos (ao vivo) na exposição.

Pela voz de Felícia, a viagem continua no filme. “Este menino há-de chamar-se Manuel, leva um lenço branco, uma faixa branca, três paninhos brancos, nasceu a 2 de Agosto de 1825. “A 1 de Março de 1830 se lançou um menino à roda desta cidade do Porto. Chama-se José.” “Esta menina chama-se Margarida, pois já vai baptizada.” Maria Luísa “leva de sinal uma camisa de linho, dois panos de algodão, uma baeta de feno, uma moeda de reis, partida, enfiada numa fita cor-de-rosa no braço direito. Foi deitada na roda às três da manhã. Há-de ser procurada.”

A expressão-promessa repete-se em muitos processos da Casa da Roda do Porto. Financiada pelo município e administrada pela Santa Casa da Misericórdia, a primeira roda ficava na Rua dos Caldeireiros, em frente ao Largo dos Lóios. Em 1838, a administração passa para a autarquia e a casa é transferida para a Rua dos Fogueteiros – e mais tarde para Antero de Quental.

A cidade não preserva nenhum destes espaços que em 1864 são convertidos em “hospícios dos expostos”, uma “instituição análoga, mas com um modelo de admissão de crianças mais restrito”, onde o “anonimato dos progenitores” já não era permitido, escreve Felícia Oliveira na sua tese de mestrado, Passados sem rosto, rostos sem nome.

Um ano de trabalho no qual a fotógrafa não quer pôr um ponto final. Além da vontade de publicar o livro, há perspectivas de a exposição viajar até Caria. Depois, diz, quer voltar a mergulhar nos arquivos, procurar novas perspectivas, quem sabe de outras rodas do país. Uma certeza existe: a fotografia continuará a ser pensada nessa “relação com o passado e História”, qual arma contra o esquecimento.

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