Elas querem ajudar-nos a salvar os documentos lá de casa
Desde 2014, o Consultório do Arquivo (Distrital do Porto) vem ajudando dezenas de pessoas a preservar acervos particulares. Alguns deles raros e, nem que seja sentimentalmente, valiosos.
Edite Pereira e Olinda Cardoso vestem bata branca e têm sempre um par de luvas à mão. Tivessem um estetoscópio e facilmente seriam confundidas com duas médicas passeando-se pelos corredores de um hospital. Mas o sítio onde as encontramos não é uma unidade de saúde, e o consultório delas é outro. Desde 2014, as duas técnicas superiores do Arquivo Distrital do Porto escutam as preocupações de quem guarda em casa documentos e não sabe bem como os salvaguardar, restaurar, catalogar. Em dois anos, dezenas de pessoas foram ao Consultório do Arquivo, na esperança de encontrar respostas para as suas preocupações. As sessões de 2017 começam já no final de Janeiro e a instituição admite até vir a fazer consultas por Skype.
Enquanto a telemedicina não leva a casa a cura para os males que afectam os documentos que por lá mantemos (às tantas mal) guardados, Edite Pereira, especialista em conservação e restauro, e Olinda Cardoso, técnica superior na área do arquivo, preparam mais uma temporada do Consultório do (e no) Arquivo. A experiência traz-lhes um gozo diferente do imenso trabalho, desconhecido pelo público, que a curta equipa do AdP desenvolve na Rua das Taipas, no antigo Mosteiro de São Bento da Vitória, onde são restaurados, catalogados e guardados quilómetros de documentos de várias instituições, mas também de particulares, com interesse para a história da região e do próprio país.
O Arquivo, que convive com uma pequena comunidade de monges beneditinos que ainda habita este espaço erguido nos séculos XVII e XVIII é, em certa medida, herdeiro do ambiente fechado, austero até, que marcaria o dia-a-dia do edifício. Para além de mosteiro, este monumento nacional foi Tribunal Militar, Casa de Reclusão e quartel antes do restauro levado a cabo sob orientação dos arquitectos Carlos Guimarães e Luís Soares Carneiro, no final da década 80 do século passado que, na ala norte, transformou parte das antigas celas dos frades em espaços de acondicionamento de muita da nossa memória colectiva.
Como no princípio, para lá do claustro, e da sala de leitura, impera o silêncio, e um trabalho invisível que, acompanhado de um constante esforço de digitalização de documentos – tarefa sem fim à vista – se vai acumulando, também, online, chegando, desta forma, a nossas casas. As consultas surgem em contraponto a esta distância quotidiana. “Não precisávamos de aparecer de bata, mas fazêmo-lo um pouco por brincadeira, que as sessões decorrem sempre de forma descontraída”, explica Olinda Cardoso. Até o logótipo da iniciativa, desenhado por um aluno de Design Gráfico dos vizinhos da Cooperativa Árvore, brinca, por via de um estetoscópio, com esta metáfora clínica presente no trabalho de salvaguarda que Edite executa com uma minúcia de cirurgiã.
Sessões deste ano começam a 25 de Janeiro
Tal como acontece desde 2014, nalguns dias do ano as fronteiras entre as zonas reservadas e as de acesso público abrem-se e as duas técnicas do ADP partilham o seu conhecimento com o público, em consultas individuais ou, nalguns casos, em sessões destinadas a grupos, que incluem visitas a espaços de acesso mais restrito. Este ano há consultas de atendimento personalizado a 25 de Janeiro, 25 de Maio, 26 de Julho e 29 de Novembro. A 25 de Março, um sábado, Dia Nacional dos Centros Históricos, há uma sessão colectiva, tal como a 9 de Junho, uma sexta-feira, Dia Internacional dos Arquivos, e 20 de Outubro, Dia do Arquivista, que este ano calha também a uma sexta-feira. O serviço é gratuito, e depende apenas de uma inscrição prévia, que pode ser feita por correio electrónico para o endereço info@adporto.pt até cinco dias antes de cada sessão.
Olinda Cardoso fala com orgulho da experiência que, em muitos casos, e como seria de esperar, as tem posto em contacto com acervos comuns, como os álbuns de família – no ano passado, os vizinhos do Centro Português de Fotografia ajudaram-nas numa sessão colectiva sobre salvaguarda e catalogação de fotografia antiga – ou outros documentos, como correspondência e livros. Mas, entre as duas dezenas de sessões já organizadas desde Fevereiro de 2014, apareceram-lhes pessoas com acervos inesperados, como uma bula papal, cartografia, material impresso e manuscrito incluído em colecções de artes de palco (teatro, cinema), de viagens (postais e documentação tibetana) e até cartas amor.
Alguns procuram perceber o valor do que guardam lá em casa. Outros sabem bem quanto vale o que têm, nem que seja sentimentalmente. De amor é a relação de António Ribeiro com o Ilusionismo. Este frequentador habitual do ADP foi ao Consultório do Arquivo em busca de apoio para a conservação de documentos e livros sobre esta arte de palco que vem investigando há décadas e sobre a qual colecciona tudo o que encontra, objectos incluídos. Guardião de muito material antigo, preocupava-o a humidade que estragava já alguns dos seus documentos, e, como aconteceu noutros casos, foi encaminhado para apoio especializado depois de uma análise ao seu estado de conservação por parte de Edite Pereira.
Como explica esta conservadora, numa hora de consulta raramente é possível desenvolver as operações de tratamento exigíveis e, tirando, alguma intervenção urgente, que possa e deva ser feita no momento, as pessoas são aconselhadas a procurar outros cuidados “médicos” através da lista da Associação Profissional de Conservadores e Restauradores. Lista essa que, nota Olinda Cardoso, deveria ser também disponibilizada pela BAD – Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas, para encaminhamento dos casos em que o apoio pretendido se centra mais na área da análise e catalogação de colecções. A equipa, liderada pela directora do ADP, Maria João Pires de Lima, já fez esse desafio à BAD durante o último congresso desta organização, no ano passado, no qual apresentou o projecto do Consultório do Arquivo.
Evitar erros irreversíveis
Na comunicação ao congresso, a equipa do ADP congratulou-se pelas dezenas de atendimentos personalizados e pela adesão às sessões colectivas realizadas desde 2014, explicando que um objectivos desta iniciativa tem sido, sempre, chamar a atenção dos leigos para o valor, nem que seja sentimental, do que possuem, e “evitar erros irreversíveis no tratamento e manipulação da documentação”. Normalmente, explica Edite Pereira, as pessoas não sabem sequer como podem limpar um documento sem o danificar, e desconhecem também a melhor maneira de o acondicionar em casa, a salvo de doenças que o podem levar à morte, leia-se destruição.
Muitas vezes – como aconteceu com a bula papal que uma pessoa lhes mostrou – o primeiro passo é a digitalização dos documentos, operação que tem os seus “quês” e à qual dedicaram também uma das sessões anteriores. Garantida a cópia digital, o consultório serve, muito, o propósito de dar a conhecer algumas técnicas simples do tipo faça-você-mesmo, materiais disponíveis no mercado e formas de os usar. Nestes dois anos, com o apoio da Associação de Amigos do Arquivo Distrital do Porto, a equipa decidiu mesmo vender um pequeno Kit básico para a preservação dos documentos de arquivo, que inclui materiais de acondicionamento (amostras) e de limpeza mecânica a seco. E, durante a sessão, é feita uma simulação prática de como deverão ser aplicados, alertando, claro, para os limites das operações caseiras.
Pensado principalmente para dar conta de dúvidas de pessoas particulares, o serviço acabou por atrair a atenção de instituições judiciais – como aconteceu com um tribunal preocupado com o enquadramento legal do arquivo de processos judiciais – autarquias e organizações da Igreja Católica. No ano passado, a dupla chegou inclusivamente a fazer uma sessão na Trofa, a pedido de uma instituição local, num tipo de consulta que às vezes resulta, posteriormente, em protocolos de apoio técnico.
Já entre as várias dezenas de cidadãos comuns que bateram à porta do ADP, são as pessoas mais velhas, muitas delas já reformadas, as que procuram os cuidados de Olinda e Edite. O facto de terem tempo livre para se dedicarem a cuidar dos acervos particulares é uma explicação, mas a especialista em arquivo encontra outra motivação possível. "É como se ao ganharmos consciência da nossa mortalidade, começássemos a procurar a imortalidade através da preservação destes documentos que são, no fundo, memória”, conclui.