Uma casa desenhada pelas árvores

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Vista aérea da nova Ala Álvaro Siza Nelson Garrido
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No comovente discurso proferido diante das muitas centenas de pessoas que assistiram à inauguração da Ala Poente do Museu de Serralves (agora Ala Álvaro Siza) — destinada a acolher a doação de Siza e outros projectos de arquitectura e mostrar a colecção permanente —, Álvaro Siza, mestre maior da arquitectura portuguesa do século XX, com a humildade própria do sábio que, aos 90 anos, ainda se interroga sobre o sentido da sua arte, disse: “Este edifício foi desenhado pelas árvores”. Significava, assim, que o desenho da nova ala foi projectado no respeito absoluto pelas árvores do parque, que já ali viviam antes de a casa nascer do meio delas e que ele respeitou ao não as derrubar, desenhando o todo de modo a não afectar essa grave presença centenária em atenção exemplar à envolvente natureza protegida no extraordinário parque.

Gesto maior, este que não só veio prolongar o anterior corpo, inaugurado 25 anos antes — a que então chamei, comovidamente, nas páginas do PÚBLICO, “o cristal de Siza”, procurando evidenciar como o edifício proporcionava um novo olhar sobre a arte que doravante iria acolher, voto cumprido ao longo de duas décadas notáveis — como, a meu ver, ultrapassar mesmo o anterior na invenção e arrojo e no constante desafio aos próprios limites da arquitectura, revelando um sentido até hoje oculto em toda a exemplar obra de Siza: a dimensão barroca.

Prodigioso desenho no espaço, o novo edifício, abraçando o primeiro, abre-se a fazer desfilar, como se num cinema diante do nosso olhar encantado, a inesgotável dança de planos e linhas que redesenham as salas e conduzem o olhar de quem as atravessa pelas paredes acima até às sancas, onde se cruzam em pura luz infinitas possibilidades construtivas, feitas de dobras que multiplicam o espaço ao infinito, ou se prolongam para fora, através de inesperadas janelas, transportando o exterior para o interior e prolongando o espaço interno para a dimensão exterior, numa dança perpétua que as liga no ar numa acrobacia.

O que evoca a poética que anima desde dentro os desenhos de Degas, em que Valéry soube ler a dimensão essencial do traço do pintor: “Seul par son art — c’est-à-dire par ce qu’il exigeait de soi. (…) Le travail, le Dessin, étaient devenus chez lui une passion, une discipline, l’objet d’une mystique et d’une éthique qui se suffisaient à elles-seules”.

Também no desenho da nova ala do museu, dádiva maior de um grande artista que a fundação teve a inteligência de acolher, o que sentimos é justamente isso: a solidão do mestre cujo trabalho e desenho, tendo-se tornado nele paixão e disciplina, se fazem objecto de uma mística e de uma ética suficientes por si mesmas que da sua imensa luz nos iluminam, permitindo ao olhar construir-se de toda outra maneira.

Percorrer as inúmeras salas que parecem nascer umas das outras, oferece-nos um percurso encantatório guiado pelos desenhos dos tectos e das misteriosas luzes, surpreendidos diante dos seus constantes caprichos e invenções — como a daquela abertura que evoca uma cortina aberta sobre uma janela triangular, cujo desenho recíproco esboça uma estrela de David — e sobretudo dessa dança prodigiosa das linhas do desenho sensível que, como no traço de Degas, fluem com a subtil elegância da passagem do vento.

Na leitura cabalística, a forma hermética da “Estrela de David” constituída por dois triângulos simetricamente invertidos é interpretada como significando a conexão do elemento masculino — o triângulo com a ponta voltada para cima constituindo o seu símbolo — com o elemento feminino, secretamente sugerido no triângulo voltado para baixo que desenha a forma de um receptáculo.

Mas a estrela proto-hebraica, conhecida desde a Suméria, é igualmente o símbolo arcaico do abraço cósmico entre o elemento celestial de que a terra absorve o poder — o triângulo com a ponta para baixo — e do elemento terrestre, o fogo, projectando no céu a sua influência: o triângulo que aponta para baixo assinala o domínio celestial sobre os quatro ventos, ligando o que está em cima ao que está em baixo, no plano da terra, referência que evoca igualmente o poderoso símbolo oriental do yin e do yang que significa o casamento cósmico dos contrários.

Se a arte representa o encontro entre a inspiração e o objecto que a comunica ou, dito de outro modo, entre o que é do domínio do espírito e o que é da ordem da matéria do mundo, talvez este surpreendente símbolo, que parece constituir-se como chave e centro do novo edifício, guarde secreta uma significação mística. De facto, como um templo de luz, ele antecipa uma arte que virá e abre-se sensivelmente a uma comunicação estreita com a envolvente natureza como se esta, ao mesmo tempo que desenha a casa sob uma forma humana diagramatizada, a acolhesse para dentro de si, proclamando a essencial relação entre arte e vida que o próprio conceito do museu fez desde o início unas, no casamento do parque com as presenças da arte.

Obra maior, a notícia de haver esta casa desenhada pelas árvores decerto soará pelos ares e de boca em boca até muito longe, contando no vento a quem a souber ouvir que num pequeno lugar no mais extremo da Europa e antes do mar existe um lugar mágico para se ver arte. E aqueles que o escutarem precipitar-se-ão pelo mundo à sua procura para se acolher sob a sua luz de cristal.

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