Para que serve um Ministério da Cultura?

A verdade dura e crua é esta: depois do 25 de Abril, nenhum governo teve até hoje um programa onde defina e aplique de forma clara o que deve ser o papel do Estado na cultura.

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Tentarei resumir em poucas palavras o que penso sobre um tema que é vital, quer para os criadores de cultura, quer para os que, em nome do Estado e do interesse público, têm a obrigação de os apoiar – num país como o nosso, com um escasso mercado, um grande atraso cultural da maioria da população e a pobreza das políticas culturais ao longo dos anos.

Ora, depois do 25 de Abril, não houve até hoje um único governo que definisse e pusesse em prática, com clareza, coerência e eficácia o que deve ser o papel do Estado na cultura, onde os criadores sofrem os efeitos de três gritantes condicionamentos: falta de meios, de mercado e do Estado.

Isto quer dizer que o Estado Novo tinha uma política para a cultura e apoios para os artistas? E que, de há quase meio século para cá, os criadores não tem toda a liberdade para criar?

Ambas estas verdades são, infelizmente, relativas. O Estado Novo tinha a “política do espírito” de António Ferro, e, com Duarte Pacheco, um incentivo a uma arquitectura modernista e às artes plásticas – sobretudo escultura, murais e tapeçarias. Foi mesmo uma época de ouro para o modernismo português. Mesmo se esse apoio, à semelhança do que se passou na Itália de Mussolini, correspondia a uma visão fascista e autoritária do Estado.

Mas desde que Duarte Pacheco morreu, em 43, e António Ferro foi dispensado, em 49, a política do regime passou a ser apenas repressiva e controladora, porque os artistas eram suspeitos de usar a arte como instrumento de crítica à ditadura e, por isso, controlados e perseguidos, através da censura e da PIDE.

Depois do 25 de Abril floriu a liberdade, como os cravos na ponta das espingardas. Mas para que serve a liberdade de criar se não há meios nem oportunidades, nem políticas públicas claras que apoiem e promovam a sua actividade?

A verdade dura e crua é esta: depois do 25 de Abril, nenhum governo teve até hoje um programa onde defina e aplique de forma clara o que deve ser o papel do Estado na cultura. Houve boas iniciativas, claro que houve, muitas delas desfeitas depois pelo Governo seguinte. Mas foram medidas isoladas, desgarradas, sem um enquadramento claro que definisse uma ideia e que inspirasse um programa.

No dia 28-09-2015, António Costa ousou dizer publicamente esta verdade: “O apoio à cultura tem de deixar de ser visto como uma esmola aos artistas para ser um investimento. Ao Estado e ao Governo não cabe escolher artistas nem ter uma política de gosto. Mas é obrigação do Estado tornar a cultura acessível a todos." Ninguém diria melhor. Infelizmente, até hoje, este desígnio continua por concretizar.

Como sabemos, há duas componentes nas políticas da cultura: o património e as artes vivas. Ninguém discute o valor da obra de Camilo, Cesário Verde ou Eça de Queiroz, nem de Columbano, Amadeo ou Paula Rego. Mas os artistas vivos continuam activos e estão dependentes de apoios e sujeitos a escrutínio público.

Deixemos, por agora, a área do património, os museus (incluindo os teatros nacionais, o São Carlos e a Cinemateca) e sobretudo os arquivos – livros, imprensa escrita e cinema –, onde há exemplos alarmantes da sua degradação por falta de recursos e excesso de burocracia.

Falemos das artes vivas. Nem todas podem ser encaradas e tratadas da mesma maneira. Em primeiro lugar, há as que lidam com a língua e as outras – artes plásticas, dança e alguma música. É fácil perceber que devem ter, também elas, ópticas diferentes.

Mas, dentro das que lidam com a língua, há que distinguir entre a literatura e as artes performativas – teatro, cinema e aquilo a que se chama depreciativamente a “música ligeira” ou “popular”, como lhe queiram chamar, a única que continua viva e com público, e onde moram hoje os nossos melhores poetas –, artes que necessitam de um mercado, de empresários e produtores: isto é, investimento e risco. As políticas têm, por isso, de ser diferentes.

Além disso, há aquelas que se expressam necessariamente em português e as outras – que o dispensam. Dois exemplos óbvios: os cantores tanto se exprimem em português como em inglês/americano. Logo, apoios diferentes.

Mas o melhor exemplo da gritante diferença entre as duas artes vivas com maior proximidade é o do teatro e o do cinema: só há teatro português (ou melhor dito, falado em português), enquanto apenas 2% dos filmes que vemos são falados na nossa língua.

Nem que fosse por isso, teatro e cinema devem ter políticas diferentes. E têm, desde o 25 de Abril, mas ambas erradas e perversas. Só um exemplo, que nenhuma política considera: mesmo se o teatro é todo falado em português, qual é a percentagem do seu repertório que é constituído por peças de autores portugueses? Mínima. E, apesar da qualidade indiscutível de muitos dos nossos encenadores e actores, a verdade é que não existe um teatro português, pela simples razão de que não temos uma dramaturgia! E, por isso, a sua função social e cultural está, desde há muito, desvirtuada e empobrecida.

Claro que se devem representar peças traduzidas do melhor que se faz “lá fora” – tal como são indispensáveis as traduções de autores estrangeiros: a tradução é um factor de enriquecimento de qualquer cultura e o livro devia ser uma das prioridades de qualquer política cultural. Mas não é.

Mas voltemos ao cinema e, generalizando, ao audiovisual. Há números que dispensam comentários: Portugal é o único país da UE onde o Estado não investe um cêntimo no cinema nem na TV pública, com os seus 19 canais. Mas, o mais grave, é que impõe taxas aos operadores e aos cidadãos para a produção de cinema e para a RTP, mas apropria-se delas e decide a sua aplicação: no cinema, através de cinco jurados escolhidos pelo Estado, que decidem, como fazia António Ferro, quais são os projectos que têm (e cito) “potencial artístico e cultural”. Pergunto: alguém aceitaria que fosse o Estado a decidir quem tem potencial – e, por isso, direito – a escrever ou a compor?

Mas há mais: sabem que somos o único país europeu e um dos raros do mundo que nunca teve um filme premiado, nem sequer nomeado, para os Óscares, nem um grande prémio para uma longa-metragem nos principais festivais: Cannes, Berlim e Veneza?

Só mais uma. Onde está a política de compras e de encomendas por parte do Estado, uma componente fundamental, sobretudo na área das artes plásticas? Quadros, painéis, murais, e, sobretudo tapeçarias, onde tínhamos uma Fábrica, em Portalegre, famosa em todo o mundo?

Quase 50 anos depois de Abril, é urgente que os políticos acordem, para que os nossos criadores não acabem como Luís de Camões: com uma tença que D. Sebastião se esquecia de pagar, a mãe a lavar escadas e o filho, cego e doente, a mandar, envergonhado, o seu escravo Jau a tentar vender a pataco alguns exemplares d'Os Lusíadas nos mercados populares!

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