Olha, cancelaram o Paddy Cosgrave!

A expressão “cancel culture”, em voga nos Estados Unidos e no Reino Unido, é apenas uma expressão nova que apenas define uma coisa velha – tentar calar o outro em função das suas opiniões.

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Paddy Cosgrave foi obrigado neste sábado a demitir-se de chefe daquele grande acontecimento que Lisboa acarinhava com enlevo: a Web Summit.

O que fez o pobre irlandês Patrick “Paddy” Cosgrave? Disse umas coisas sobre Israel que aquela entidade chamada “Ocidente”, ou, melhor, empresas ocidentais, achou que não podiam ser ditas.

Foi no X (antigo Twitter) que Paddy revelou os seus estados de alma, ao mostrar-se chocado pela “retórica e acções” de vários governos ocidentais depois do ataque do Hamas a Israel de 7 de Outubro, “com a excepção particular do Governo da Irlanda, que, por uma vez, está a fazer a coisa certa”.

“Crimes de guerra são crimes de guerra mesmo quando são cometidos por aliados, e devem ser chamados exactamente pelo que são”, escreveu Paddy, e esta é uma afirmação que está absolutamente correcta face ao direito internacional. Mas, claro, de cada vez que há uma guerra, o direito internacional vai à vida e defendemos emocionalmente “os nossos aliados”.

Mr. Cosgrave ainda veio ridiculamente pedir desculpas, depois do anúncio do boicote de Israel à Web Summit, mas já não se safou. Ainda acrescentou que o ataque do Hamas foi “monstruoso”, mas o estrago estava feito. Pediu “a libertação incondicional de todos os reféns”, mas nada do que ele viesse, depois da frase fatal, dizer evitaria a debandada geral das empresas tecnológicas da cimeira marcada para Novembro, em Lisboa.

Neste sábado, Paddy Cosgrave demitiu-se de chefe executivo da Web Summit, que agora vai arranjar um substituto que defenda cegamente as matanças passadas e futuras de Israel – que nunca cometeu, obviamente, nem cometerá qualquer “crime de guerra” aos olhos da maioria dos governos ocidentais.

A expressão “cancel culture”, muito em voga nos Estados Unidos e nos vários países do Reino Unido, é apenas uma expressão nova que define uma coisa velha – tentar calar o outro em função das suas opiniões.

Nós, portugueses, vivemos em “cancel culture” durante 48 anos. Já depois do 25 de Abril, em 1983, lembro-me de um filme chamado Pato com Laranja ter a sua transmissão interrompida pela RTP depois de alguns telefonemas de ouvintes chocados.

A Grande Reportagem sobre a guerra civil de Angola, de José Manuel Barata-Feyo, foi censurada em 1984, outra das nossas medalhas de honra governamentais em matéria de “cancel culture”. Quando está em causa uma guerra, as democracias são perfeitamente capazes de se (auto-)suspender.

O editorial de sexta-feira do Haaretz (um diário de referência israelita, que provavelmente poucos terão a lata de identificar como anti-semita) insurge-se contra a frase do chefe máximo da polícia de Israel que disse que “mete em autocarros qualquer um que apanhe a defender Gaza”.

Escreve o Haaretz: “As ameaças do chefe da polícia contra os israelitas que querem exprimir protestos ou solidariedade não mantêm a ordem pública; antes, perturbam-na ainda mais. Mesmo em tempo de guerra, é aceitável a identificação com os residentes de Gaza e com o seu sofrimento ou criticar as acções de Israel.”

Um dos argumentos que há séculos servem para justificar toda e qualquer acção israelita é que é a única democracia da região. É um facto objectivo.

Só que, como diz o Haaretz, é um facto “escorregadio” por estes tempos. “O que começa com zero tolerância para com quem exprime solidariedade com os habitantes de Gaza pode desenvolver-se em zero tolerância para com as críticas contra o Governo ou o primeiro-ministro. Não é uma coincidência que a perseguição de israelitas por coisas que disseram ou escreveram atingiu uma dimensão intolerável por estes dias.”

Agora, falem de democracia e de minissaias.

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