François Audouze: “Quase caí da cadeira quando bebi um Sauternes de 1923, nunca tinha bebido nada assim”

François Audouze, 80 anos, é um apaixonado por vinhos velhos e quer mostrar ao mundo o que esses néctares têm de tão especial. Seja no Instagram, seja na academia que criou há já 20 anos.

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O PÚBLICO entrevistou o coleccionador de vinhos antigos François Audouze na Amorim Cork Rui Oliveira
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François Audouze é um apaixonado por vinhos velhos, que colecciona desde os 27 anos. Tem cerca de 40.000 vinhos, das melhores casas produtoras, sobretudo das regiões clássicas do vinho, mas também de outras geografias. Durante anos, foi construindo a sua colecção enquanto "trabalhava, trabalhava, trabalhava" na indústria siderúrgica francesa, à frente dos destinos de um grande grupo. Ainda no activo, começou a guardar as garrafas vazias para se lembrar dos vinhos que bebera. E com elas também as rolhas, tendo reunido cerca de 20.000. Recentemente, doou parte dessas rolhas à Amorim Cork, que as expôs no seu novo espaço museológico, em Santa Maria de Lamas, Santa Maria da Feira, onde entrevistámos o francês de 80 anos.

Li que começou a coleccionar vinhos quando era ainda muito jovem. Que idade tinha?
Sim, 27 anos. Comprei uma casa que tinha uma cave. Tive a ideia de a encher, mas não sabia sobre vinho. Foi um processo lento. Um amigo aconselhou-me a ir a umas provas cegas de vinhos velhos num sítio chamado Claude Constant. Era uma mercearia de grandes produtos e Claude Constant tinha herdado a adega do seu avô, o que permitia aos seus amigos beberem ali, com ele, vinhos da segunda metade do século XIX. Bebi grandes vinhos nesse sítio. Foi uma boa forma de aprender a reconhecer vinhos. E foi durante uma dessas provas cegas que bebi um vinho incrível e perfeito, um Château Climens 1923. Fiquei realmente em choque, quase caí da cadeira, porque esse Sauternes era tão complexo quando comparado com tudo o que eu já tinha bebido, que eu pensei: a minha ligação aos vinhos no futuro será esta, os vinhos velhos. Já bebia grandes vinhos, Château Latour, Château Haut-Brion [ambos da região clássica de Bordéus], mas eram vinhos jovens. E quando descobri que um vinho velho pode oferecer muito mais, decidi comprar vinhos velhos. Queria explorar tudo, tudo, tudo.

Ainda vive nessa casa?
Não, a colecção já mudou de sítio muitas vezes. E, para a construir, o caminho não foi o das provas cegas. Foi experimentar e beber vinhos e depois escolher os que seriam para guardar. A minha primeira cave ficava na casa que comprei em 1970 e que vendi em 1986. Comprei em leilões, ajudado por um especialista em vinhos que se chama Jean-Luc Barré. Comprámos juntos de 1974 a 1978 — ele ajudou-me a decidir o que comprar — e depois comprei sozinho.

Essa primeira cave, imagino, seria pequena para os vinhos que hoje tem.
Muito pequena, de algumas centenas [de garrafas]. Eu construí outra casa em 1983, pedi ao arquitecto para desenhar uma cave e, quando considero o que tenho agora, [também essa] era uma cave ridícula, de tão pequena. Hoje a minha cave não fica em minha casa, porque não caberia, é um edifício autónomo.

E qual foi o primeiro vinho velho que comprou, lembra-se?
Tenho uma ideia que o primeiro vinho velho terá sido algo como um [Château] Gruaud Larose 1928 ou um [Château] Latour 1921. Sei que comprei na Nicolas, uma loja de vinhos em França que tem milhares de localizações e o maior stock de vinhos velhos [com espaço em Lisboa desde Abril].

Os seus jantares são lendários. Ainda os organiza? Só em Paris?
Sim, sim. Para mim é mais fácil fazer jantares em Paris porque fica perto da minha cave, que fica nos arredores da cidade. Mas já fiz alguns jantares na Provença, em França, em Londres e dois jantares em Pequim, na China. Isso foi há 12 anos e foi uma experiência fantástica.

Alguma vez teve vinhos portugueses nesses eventos?
Eu digo-lhe qual é o perfil desses jantares. São eventos para dez pessoas, com dois champanhes, dois vinhos brancos, dois Bordéus, dois Borgonha ou vinhos de outra região, e terminamos com dois Sauternes, vinhos doces. Às vezes, um Porto pode substituir um Sauternes.

Consigo perceber que o Sauternes manteve sempre um lugar especial no seu coração.
Sim, e [Château d'] Yquem é o melhor vinho doce do mundo para mim. Eu sou um apaixonado pelo vinho Madeira, por exemplo, mas eu não quero fazer uma prova, quero uma experiência gastronómica. E, por exemplo, quando coloco dois vinhos brancos, um vai ser, vamos dizer, de 1960 e o outro será dos anos 1920. Não há competição entre eles. A competição entre os vinhos seria intelectual, não hedonista.

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François Audouze já abriu mais de 20.000 garrafas de vinho, guardou as mais belas rolhas, que doou recentemente à Amorim Cork, que as expôs na sua Heritage House Rui Oliveira
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Com as rolhas, o coleccionador francês de vinhos antigos François Audouze também doou à corticeira portuguesa centenas de cápsulas Rui Oliveira

E obviamente esses vinhos ainda estão bebíveis, até esse branco dos anos 1920, que já tem mais de 100 anos…
O vinho tem uma vida infinita. A morte de um vinho acontece quando a rolha morre. O líquido propriamente dito pode durar para sempre e pode melhorar. Aceitará se eu disser que o gosto de um vinho do Porto ou de um Madeira melhora com a idade. Porque não um vinho tinto ou um vinho branco?

Quem abre esses vinhos raros? Há algum ritual que goste de seguir?
Sou eu que abro todas as garrafas. E eu tenho um método, que foi apelidado de método Audouze, que consiste numa oxigenação lenta. Abrimos um vinho quatro horas antes do jantar e deixamo-lo estar, não lhe fazemos nada. Deixamo-lo melhorar através da acção da oxigenação lenta. Não lhe tocamos mais, nunca o decantamos. O resultado é incrível. Já organizei 276 jantares, isso representa 3100 garrafas abertas, vinhos com uma idade média de 50 anos – 30 para os champanhes, 40 para o vinho branco, 60 para os tintos e 80 para os licorosos. Pus de parte, por estarem absolutamente imbebíveis, menos de 50 garrafas, ou seja, 2%. Ninguém acredita.

O François envolve-se pessoalmente em todas as decisões de compra?
Compro tanto vinho que resolvi acreditar em alguns merchants de quem gosto. Esses comerciantes sabem que eu vou beber o vinho, por isso, só me propõem bons vinhos.

Mas o François deve receber várias propostas…
Sim, é terrível. Tenho que declinar. Recebo mais de 30 emails por dia a propor-me vinhos. Já excluo alguns [sem ler].

Também bebe vinhos mais jovens?
Claro, quando vamos a um restaurante, estamos a obrigados a beber vinhos jovens. E há vinhos jovens que são absolutamente fantásticos, na sua juventude e frescura, e que se tornarão grandes vinhos. Mas a minha paixão está nos vinhos velhos.

Olha só para as regiões clássicas ou também procura outras geografias?
É preciso haver uma ligação. Se eu não tiver uma ligação, não sinto necessidade de explorar. Por exemplo, descobri o [vinho] Penfolds Grange, na Austrália, e, uau!, achei-o fantástico. Decidi seguir a Penfolds. Em Espanha, o meu vinho favorito é o Vega Sicilia e eu tenho uma colecção de Vega Sicilia. E, provavelmente, já bebi mais colheitas de Vega Sicilia do que muitos espanhóis. Já bebi 45 colheitas diferentes do vinho. Preciso de uma ligação, não sou um explorador.

Há pouco, quando lhe perguntei por vinhos velhos portugueses, não me referia apenas a servi-los nos seus jantares. Perguntava em geral.
Eu adoro o vinho Madeira. E é possível beber vinho Madeira em mais situações do que bebemos vinho do Porto, que é um vinho fantástico. Eu gostava de beber mais vinhos Madeira, mas é preciso uma ocasião. Com os Portos é diferente, eu tenho uma colecção de Portos muitos velhos, datando até ao século XVIII. E durante a minha estadia também bebi vinhos [tranquilos] muito bons.

E vinhos com rolha, abre muitas garrafas contaminadas?
Provavelmente tenho um toque mágico, mas quase nunca abro vinho com rolha. Mas, sabe, nos vinhos velhos, nunca apanho rolha. Já perguntei aos especialistas aqui [na Amorim Cork] se era possível o TCA [2,4,6-Tricloroanisol] desaparecer a dada altura. Não há certezas, mas o que é claro é que nos vinhos velhos não aparece.

E as falsificações? Obviamente, conhecerá muito bem o que compra e como ficar longe da contrafacção, mas…
Existem falsificações. Ninguém pode dizer que nunca comprou um vinho falsificado, é impossível. Eu já fui enganado. Mas podemos ser cautelosos. Por exemplo, eu nunca compro vinhos velhos que tenham rótulos limpos e perfeitos. Eu quero rótulos que tenham vivido. Tento evitar… Se alguém lhe propuser uma magnum do [Château] Petrus 1921 [de Bordéus], pode ter certeza que é uma falsificação.

Mas tem de ser um vinho de idade semelhante.
Sim, exacto. Mas é possível sermos enganados. Eu hoje não compro vinhos que possam ser falsificações.

Com que frequência compra hoje vinhos? Hoje já comprou alguma coisa?
Não, porque no hotel tive dificuldade em ler o meu email. Hoje em dia compro duas vezes por semana.

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François Audouze esteve em Portugal no início de Outubro e o PÚBLICO entrevistou-o na Amorim Cork no dia 3 Rui Oliveira

Li um artigo de outro jornalista, que esteve num dos seus jantares, há uns 12 anos, e ele escrevia sobre os “bons problemas” que o François tinha, no sentido, de ter vinhos espectaculares à espera da companhia ou do momento certos para serem abertos.
Se leu o jornalista em que estou a pensar, devo dizer que é fácil criticar quando não se compreende. E ele não compreendeu. E eu encontro esse tipo de inveja de quem tem dinheiro muitas vezes, dizem que é algo para ricos. Não é, eu partilho [os meus vinhos] com toda a gente. Estou quero mostrar às pessoas que os vinhos velhos são algo absolutamente fantástico.

E as rolhas que nos trouxeram aqui, pode falar-me delas?
Quando eu era CEO de um grupo de 70 empresas, presente em 120 localizações, com 4000 colaboradores, eu trabalhava, trabalhava, trabalhava. Eu gostava de beber grandes vinhos, mas o meu foco estava na empresa. E um dia um amigo perguntou-me se eu me lembrava do vinho fantástico que bebêramos na quarta-feira anterior. E eu disse: não, desculpa, não me lembro. Eu estava focado no meu trabalho. Resolvi coleccionar garrafas, para memorizar o que tinha bebido. Descobri que as cápsulas e as rolhas eram maravilhosas. E comecei a coleccioná-las também. Eu tenho uma sala só para isso, no edifício da cave, porque tenho mais de 8000 garrafas vazias e tinha mais de 4000 rolhas. E, a dado momento, pensei: qual é o futuro de tudo isto?

E como é que o seu percurso se cruza com a Amorim?
Um amigo, jornalista francês, falou-me da Academia Amorim e sugeriu que eu lhes escrevesse sobre as minhas rolhas. Apresentei-lhes um trabalho sobre a vida das rolhas e ganhei um prémio. Isso foi há 20 anos. Quero que [o meu trabalho] tenha algum tipo de continuidade. Ninguém tem vinhos velhos, poucas pessoas guardam vinhos velhos. Há rolhas mais jovens e há aí rolhas muito velhas, certamente do século XIX. E não são apenas de vinhos franceses. É suposto contribuírem para uma atmosfera de respeito pela cortiça. Por exemplo, o homem que bebeu dez vezes mais do que eu, foi o Michael Broadbent, um crítico de vinhos prestigiosos, mas ele provou-os, bebeu-os, sempre de serviço e todos os vinhos eram abertos por sommeliers ou por outras pessoas. Eu abro tudo o que bebo. Tenho memória desses vinhos. E isto transmite esse respeito.

Não sendo um museu público, a Heritage House é um “cantinho” que conta “a história da família Amorim na cortiça”, em Santa Maria de Lamas Rui Oliveira
Pormenor do novo espaço museológico da Amorim Cork em Santa Maria da Feira Rui Oliveira
Pormenor da cortiça, matéria-prima que a Amorim trabalha há 153 anos e que literalmente respiramos no espaço Heritage House Rui Oliveira
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Não sendo um museu público, a Heritage House é um “cantinho” que conta “a história da família Amorim na cortiça”, em Santa Maria de Lamas Rui Oliveira

E alguns desses vinhos exigiram a abertura a fogo, imagino.
Não, não o método português. É interessante, mas sabrage para mim é desrespeitoso. Eu respeito tanto o vinho, as rolhas, tudo. A dificuldade com as rolhas é que o gargalo das garrafas não é a direito, mas eu estou habituado e adapto-me. Tenho algumas rolhas que se partiram no processo e eu também guardei essas. Para as garrafas, também gostava de encontrar um museu, mas é uma colecção enorme. As regiões só estariam interessadas nos seus vinhos. Por exemplo, eu tenho três filas de Romanée-Conti [da Borgonha]. Ninguém tem isso. Seria uma pena perder isso.

O François tem uma conta de Instagram muito activa, fale-me disso.
Tenho 55.000 seguidores. Adoro dar-lhes a descobrir que o vinho não é o que eles lêem. É algo completamente diferente. Em 2003, criei a Academia de Vinhos Antigos [Académie des Vins Anciens], que é um projecto de partilha e pedagogia. As pessoas vêm num grupo de 30 a 33 pessoas e eu abro 50 vinhos e as pessoas pagam, por um copo de um vinho de 1928, 12 euros. Não é nada, é menos que uma cerveja. E é muito trabalho, porque eu faço tudo sozinho. Faço dois desses encontros por ano. No dia 30 de Novembro farei o 39.º encontro.

O vinho é a sua vida?
Sim, é a minha paixão. Eu trabalho muito, porque eu escrevo sobre os vinhos que bebo. Publico uma carta de quatro páginas por semana e já passei as 1.000 cartas. Envio-as para quem está registado no meu blogue. Dou uma ideia no blogue e escrevo aos registados, que são pouco mais de 2.000. Tenho 42.000 fotografias, todas tiradas por mim, perto de 20.000 notas de prova e mais de 5.000 artigos no meu blogue. E eu faço tudo.

Quando é que se reformou da indústria siderúrgica?
Há 20 anos.

Antes disso o vinho já estava muito presente na sua vida.
Sim, mas era um hobby. Porque eu trabalhava, trabalhava, trabalhava. E, sim, comprava, porque sou incapaz de viver sem comprar vinhos.

Nesses 20 anos como evoluiu a sua cave?
Cresceu, porque eu compro mais do que bebo. Quando me reformei, devia ter à volta de 30.000 vinhos e hoje tenho 40.000. Mas é difícil, eu sou um homem de números, mas não os tenho todos de cabeça.

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