Uma casa com um nome
Lamentei não poder trazer o piano, a secretária, o sofá. Mudei a paisagem, encarei novas vizinhanças, tentei ser a pessoa que moraria num sótão, e não foi difícil, porque eu já era essa, afinal.
Eis-nos aqui, em jeito de despedida de mais uma morada.
As três sentadas no chão de madeira, eu a tentar compensar a falta de jeito para trabalhos manuais. Elas, impacientes, sabem bem o que querem, mas não têm ainda a destreza motora para que os recortes acompanhem a imaginação. E a mim falta-me a habilidade, que nem toda a vontade do mundo compensa.
Dou por mim a olhar em volta, com medo que não nos devolvam a caução. A tentar perceber que tipo de pasta está entranhada no chão. E com alguma vontade de lhes ralhar pelo dia em que colaram os autocolantes sem pensarem que com eles poderia vir cal gasta. Mas a saber da inutilidade deste sermão retroactivo. A investigar qual o esfregão adequado para cada tipo de nódoa. Quem sou eu?
Nunca tinha sentido tanto carinho por uma casa. E nem tive tempo de decorar o código postal.
Foi a casa que nos recebeu como uma arca pouco credível no meio de um dilúvio. E nós entrámos, meio assustadas, meio agradecidas, membros de uma espécie rara num novo habitat.
Celebrei móveis do Ikea caberem em pequenas trincheiras. Compus novas estantes adaptadas aos tectos esconsos. Lamentei não poder trazer o piano, a secretária, o sofá. Mudei a paisagem, encarei novas vizinhanças, tentei ser a pessoa que moraria num sótão, e não foi difícil, porque eu já era essa, afinal.
A casa onde me vi confrontada com ratos e com a descoberta angustiante da existência de baratas alemãs. Onde tive de ser forte. Mas também onde me senti tão frágil como uma criança. O sítio de onde liguei mais vezes aos meus pais na vida. Muitas vezes ligava a sussurrar, para confirmarem que eu ainda respirava, depois de uma entrega bem-sucedida de um hambúrguer por um estafeta. Pedia-lhes que esperassem que o homem saísse do portão. O medo irracional dos estafetas de entregas e do soar da campainha. Porque é que é agora que tenho mais medo?
Uma das casas onde vivi menos tempo, mas onde me senti apaziguada por saber que a pessoa que a comprou vai manter a traça original. Como se fosse a minha casa há gerações e gerações.
Uma casa onde questionei todos os meus verbos. Sempre fui de ir, e agora só queria ficar. Sempre fui de me desapegar, e já chorei mais do que por qualquer amor. Sempre fui de receber, e não recebi quase ninguém.
Uma espécie de ninho. A casa que protegeu e que me deixou sonhar sossegada.
Daqui levo lembranças frágeis enroladas em papel de bolha. O gato malhado que se deita no jardim, com olhar snob. Os pequenos esconderijos, a palmeira a abanar. O senhorio que insistia em chamar-me Mafalda. A Sofia a aprender a escrever Amor. Papéis com “Amor” espalhados por todo o lado.
A casa onde percebi o significado de viver a minha vida, com tudo o que isso comporta. A casa, que é um sótão, que me fez andar curvada e bater com a cabeça nas traves de madeira. E onde estive mais sozinha, mas menos solitária.
Quando não sabia para onde ir, olhei para o nome da casa, escrito na fachada, e decidi. Porque esta é uma casa com um nome, e o nome é Girassol.