Taxa de depósito de garrafas e latas avança, mas é quase impossível cumprir as metas de recolha e reciclagem

Processo legislativo terá de ser finalizado, há concursos públicos para lançar e todo um sistema para montar.

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Latas e garrafas de plástico são abrangidas, mas não as de vidro, o que contraria o que estava previsto na lei Matilde Fieschi
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O Governo está, finalmente, a ultimar a regulação do sistema de depósito e reembolso (SDR) de embalagens de bebidas, não reutilizáveis, em plástico, metais ferrosos ou alumínio, que já deveria ter entrado em vigor a 1 de Janeiro de 2022. O documento que está a ser preparado define o cumprimento de metas que estão previstas pela União Europeia (UE), para 2025 e 2029, mas o atraso do processo poderá tornar impossível o seu cumprimento.

Foi ainda em Dezembro de 2018 que entrou em vigor a lei que estabelecia a obrigatoriedade de aplicação do SDR, definindo-se aí que haveria um projecto-piloto, mas que “a partir de 1 de Janeiro de 2022 é obrigatória a existência de sistema de depósito de embalagens de bebidas em plástico, vidro, metais ferrosos e alumínio com depósito não reutilizáveis”. O prazo então dado para que este sistema fosse regulamentado era de 180 dias.

Mais de quatro anos depois do fim desse prazo, o Governo tem, finalmente, uma proposta de alteração ao decreto-lei que regulamenta a gestão de um conjunto específico de resíduos, aditando-lhe toda uma secção relativa ao SDR. Segundo a proposta a que o PÚBLICO teve acesso, a compra de “embalagens primárias não reutilizáveis de bebidas em plástico, metais ferrosos e alumínio, com uma volumetria igual ou inferior a três litros” implicará o pagamento de um depósito pelo consumidor, que lhe será reembolsado no momento em que devolver a respectiva embalagem, em locais previstos para o efeito, desde que esta não esteja danificada ou com rótulo ilegível.

Serão incluídas neste sistema as embalagens com características já referidas de água, sumos e néctares, mixes de fruta e vegetais, concentrados para diluição, refrigerantes (incluindo aqueles à base de chá, café ou tisanas), bebidas energéticas ou isotónicas, cerveja, sidra e mixes alcoólicos, ficando de fora as bebidas que contenham “mais de 25% de ingredientes de origem láctea e as que contenham teor alcoólico superior a 10%”, refere-se na proposta.

A obrigatoriedade de disponibilizar equipamentos de retorno de garrafas e latas não se aplica a todas as lojas, super e hipermercados, havendo regras distintas consoante a sua dimensão. Assim, os estabelecimentos comerciais com uma área igual ou superior a 400 metros quadrados serão obrigadas a receber todas as embalagens incluídas no SDR, enquanto aqueles que tenham uma área entre os 50 e os 400 metros quadrados apenas são obrigados a recolher as embalagens vendidas no respectivo estabelecimento. Lojas com dimensão menor ficam isentas desta obrigatoriedade, mas podem optar por fazê-lo, pedindo para se constituírem como pontos de recolha.

Já nos restaurantes e cafés não há lugar à cobrança do depósito, se as embalagens ficarem no estabelecimento. Contudo, a proposta prevê que, em caso de pré-pagamento, e mesmo que o cliente consuma as bebidas no local, seja cobrado o depósito, sendo-lhe devolvido no final.

O valor do depósito a cobrar por cada embalagem não é definido na proposta, que remete essa decisão para um despacho posterior, acordado entre membros do Governo das áreas da economia e ambiente. Contudo, um estudo pedido pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) durante a preparação desta proposta, e citado pelo Jornal de Notícias já em Maio de 2021, referia que essa taxa poderia variar entre os cinco e os 15 cêntimos.

A proposta em cima da mesa estipula que o reembolso ao cliente pode ser em numerário ou assumir outras formas, embora, é dito, a primeira hipótese nunca possa ser retirada ou condicionada. Entre as alternativas propostas está, nos casos da recolha manual, um desconto equivalente ao valor a receber noutras compras que possam ser feitas. Já nos pontos de recolha automática pode ser emitido um vale no valor a receber, que pode ser convertido em dinheiro ou ser descontado noutra compra.

Sem data para funcionar

Quando é que tudo isto entrará em vigor é a grande questão que fica por responder. O documento refere que o SDR “entra em funcionamento na data da entrada em vigor do presente diploma”, mas isso refere-se apenas ao início de um processo que pode ser longo. Mesmo que o diploma entre em vigor ainda este ano, será preciso lançar um concurso público para definir qual será a entidade gestora do SDR; os embaladores têm 180 dias para aderir a essa entidade; é preciso montar todo o processo, incluindo fluxos e pontos de recolha, centros de consolidação, de contagem e tratamento dos resíduos – sujeitos a regras apertadas, nomeadamente a obrigatoriedade de não serem misturados com quaisquer outros resíduos; além de ser preciso seleccionar, também por concurso, qual o operador que irá proceder ao tratamento destes materiais.

O estudo já referido estimava que, após a escolha da entidade gestora do SDR, seriam necessários pelo menos “18 meses” para que toda a parte operacional estivesse em funcionamento, permitindo o arranque definitivo da medida. Talvez por isso não sejam estabelecidos prazos na proposta do Governo, além daqueles que se referem à obrigatoriedade do cumprimento de metas já definidas pela UE. Assim, até 31 de Dezembro de 2025 o SDR deve garantir “a recolha de 77%, em peso, das embalagens colocadas no mercado” e “a reciclagem por incorporação na produção de novas embalagens para bebidas de 25% de plástico reciclado que contenha politereftalato de etileno como principal componente (‘garrafas de PET’)”. Valores que terão de subir, respectivamente, para 90% e 30%, a 31 de Dezembro de 2029.

Susana Fonseca, da associação ambientalista Zero, que é uma das entidades que se devem pronunciar sobre esta proposta até ao final do mês, diz que parece ser muito difícil ter o SDR a funcionar, na melhor das hipóteses e numa visão muito optimista, antes de Setembro de 2025. “Os investimentos são grandes, há muita coisa a construir, está tudo muito difícil, os fornecedores não conseguem dar resposta, mesmo passada a pandemia”, diz. Por isso, as dúvidas de que se consigam cumprir as metas definidas são mais do que muitas. “Nunca cumpriremos estas metas sem o SDR”, diz. E o SDR não deve estar a funcionar a tempo. Entretanto, pelas contas da Zero, observa, desde 1 de Janeiro de 2022 até agora estamos “a desperdiçar quatro milhões destas embalagens por dia”, por o SDR não existir.​

Para Susana Fonseca um dos pontos negativos da proposta em cima da mesa – além do enorme atraso já referido – é o facto de deixar de fora o vidro. A lei de 2018 incluía-o nos materiais a serem sujeitos ao SDR e o estudo pedido pela APA recomendava que as garrafas deste material continuassem a ser colocadas nos ecopontos, mas previa-se que, se em 2027 não se atingisse uma taxa de 80% de reciclagem dessas embalagens, a sua integração no SDR fosse obrigatória. Agora, a proposta não tem qualquer referência a esse material.

“Politicamente não há justificação para não incluir o vidro. Além de ser um desrespeito pela lei da Assembleia da República [de 2018], a não inclusão de um material que não cumpre as metas estabelecidas há décadas não se compreende. A integração do vidro neste sistema iria garantir o cumprimento das metas. Vamos perguntar ao Governo o que se passou”, diz.

A Zero também acredita que devia ser dado menos protagonismo aos municípios, aos quais é atribuída a responsabilidade de recolha das embalagens entregues nos pontos de retorno, no âmbito do SDR. “Temos algum receio que haja incapacidade de implementar um sistema que tem de ser robusto. Os municípios já têm muito trabalho pela frente e já não estão a cumprir as metas das recolhas que têm em mãos”, argumenta.