Os irmãos Martins querem voltar “a pôr a Mêda no mapa vitivinícola nacional”. Quem trabalha no sector sabe perfeitamente o que é aquele território, encravado entre o Douro Superior e a parte mais a norte da Beira Interior. Os outros, a não ser que tenham qualquer tipo de ligação à região, não saberão o que a Mêda tem: a concentração do Douro, a mineralidade do granito beirão e a elegância do Dão, logo ali ao lado.
Rui e Vasco Martins são a quarta geração da Família Carvalho Martins, que produz uvas (e agora vinho) na Mêda desde que o bisavô de ambos comprou uma pequena vinha no Vale do Olmo, Longroiva, 1,5 hectares que, entretanto, o pai, Manuel, fez crescer para 23 hectares. Uma propriedade ondulante, em altitude, entre os 550 e os 600 metros, em processo de certificação em modo biológico, toda rodeada de mato e de onde conseguimos avistar a serra da Marofa, todo o planalto beirão e Espanha.
“Nem é Douro, nem é Beira, é Mêda. A Mêda tem um potencial e uma diversidade espectacular, várias encostas e exposições, tem tudo o que nós quisermos.” O entusiasmo de Rui é contagiante. E compreensível.
Como tantas outras famílias forjadas no vinho, também os Carvalho Martins começaram por vender as uvas — a geração anterior tinha, e tem, outras actividades profissionais, que lhe permitiu prosseguir o sonho telúrico — e só em 2014 a actual geração experimentou engarrafar.
Rui, de 37 anos, é formado em Direito e Vasco, 39, ‘até’ já estava no sector do vinho, mas tinha mais com o que se ocupar (é administrador e responsável pela área de enologia da Casa Santos Lima, presente hoje em sete regiões). São alfacinhas, vivem em Lisboa, mas fazem vindimas na Mêda desde que se conhecem (em miúdos, a viagem demorava “umas seis horas”), e as raízes cedo os entrelaçaram. Essas e outras, já que a cultura do vinho também lhes chega do lado materno e de uma das ramificações dos Lello.
Há dez vindimas, começaram a engendrar o Golpe (nome da principal marca de vinhos que comercializam; a outra chama-se Pacto, de pacto intergeracional e com a natureza). “Decidimos deixar de ser uma família de viticultores para sermos uma família de vitivinicultores”, conta Vasco. O projecto tem sede e adega na freguesia de Mêda, Outeiro de Gatos e Fontelonga, que é metade Douro, metade Beira Interior, mas os vinhos são, até agora, todos Douro. Confuso? Difícil? Nada, porque os irmãos Carvalho Martins pensam Mêda. E “o terroir da Mêda é único”, atalha Vasco Martins. “Literalmente uma região de transição.”
Nas gerações anteriores, ninguém fazia vinho. “Vendíamos sempre a uva. Mas eu e o meu irmão sabíamos que tínhamos excelência — estas uvas aqui de altitude sempre foram muito cobiçadas, tanto as brancas como as tintas, pelas grandes casas de vinho do Porto. Demorámos vários anos a amadurecer na nossa cabeça o modelo de negócio e, em 2014, passámos a fazer vinho”, explica Vasco, que tem dupla formação (começou na Economia e acumulou mais tarde Enologia e Viticultura).
“A primeira vindima não foi aqui; 2014 foi um ano zero, fizemos vinho num colega nosso, 4000 garrafas, para testar”, precisa Rui. Em 2015, fizeram então os primeiros vinhos na adega que o bisavô António Carvalho construiu em 1930. Ao lado, já temos uma grande cave, semienterrada, de produto acabado e onde estagiam os vinhos da família.
É Rui quem está a tempo inteiro no Golpe. Formado em Direito, ainda tentou ir para o mundo da diplomacia, mas em Bruxelas trabalhou antes em gerar negócio para uma consultora informática. Durante esse período, foi acalentando o sonho. “Entre 2013 e 2018, estava aqui também a começar o Golpe, só que o nosso projecto ainda não dava para viver disto.”
Quiseram avançar, e avançaram, à cautela. Hoje produzem 65.000 garrafas e exportam 70% dessa produção, para o Canadá, Estados Unidos, Brasil e Inglaterra. Rui ocupa-se da gestão diária da operação e é o homem da vinha — apaixonado pela viticultura e estudante das práticas de agricultura regenerativa. Vasco acrescenta as viagens à Mêda às muitas que já faz. Os dois têm como enólogo residente o minhoto Rui Carrelo.
O palhete e outras maravilhas
Na adega de 1930, a enologia é moderna, tirando o projecto o melhor partido “do que que se fazia bem antigamente, mas também do que se faz hoje”, nota Vasco. O palhete dos Carvalho Martins, um dos primeiros (se não o primeiro) palhetes com Denominação de Origem Douro — "não foi fácil certificar", conta, apesar de a legislação o prever —, impressionou-nos pelo seu perfil moderno, de cor aberta, mas com fruta viva e uma acidez refrescante. Versátil, gastronómico e muito guloso. Ainda bem que hoje há menos preconceito e que as modas também são outras.
“Nos anos 1990 e 2000, as pessoas deixaram de consumir [o palhete da Mêda], diziam que era aguado e não era vinho. Agora, o consumidor pede vinhos menos alcoólicos, menos extraídos. E nós achámos que devíamos aproveitar esta história da Mêda e fazer um palhete”, contextualiza Vasco Martins. O primeiro Pacto Palhete é de 2018, “uma brincadeira”, para a qual o tempo provou “haver receptividade”. Em 2021, fizeram 3000 garrafas, no ano seguinte multiplicaram o número por dois e em 2023 engarrafarão 10.000.
Noutro posicionamento, este terroir de grande nobreza e elevadas amplitudes térmicas (a mínima, no Inverno, pode chegar aos 5 graus negativos e, no Verão, a máxima ultrapassa facilmente os 40) dá outro vinho impressionante. O Família Carvalho Branco 2019, referência de topo do produtor, e fermentada 100% em barrica, é um vinho especial. Complexo, no nariz e na boca, é um branco encorpado, gordo e com um final interminável, num conjunto que mascara a elevada acidez que o vinho tem (pelas análises, ninguém acredita que foi feito de uvas maduras, sublinha-nos Rui). Esteve três anos em garrafa, antes de o lançarem. E pode ficar mais.
Quando visitámos os vinhos Golpe, na vindima, Rui pisava dentro de uma barrica o que há-de vir a ser o Família Carvalho Tinto 2023. Enquanto não lançam esse topo de gama (que também estagiará em carvalho francês), é de notar que o Golpe Reserva Tinto 2018 (colheita que, infelizmente para o leitor, já não está no mercado; ganhou um tender na Suécia, que levou logo metade da produção) é também ele vinho de terroir, dos que a Mêda pode dar, de taninos redondos e muito elegante.
Na cave da Família Carvalho Martins, também há vinho do Porto, só colheitas e tawnies, que Rui e Vasco começaram a experimentar logo no arranque do actual projecto, com uma pipa por cada elemento da nova e quinta geração — calhou terem sido pais pela primeira vez mais ou menos na mesma altura. “Daqui a dois anos, testaremos o mercado com o nosso Colheita.” Junto aos tonéis comprados na região do italiano Barolo, também estagiam os vinhos tranquilos, já em garrafa, alguns por vários meses, antes de irem para o mercado.
A adega e a cave permitem-lhes ir até às “100 mil garrafas”. As uvas são próprias, e ainda sobram (a família continua a vender parte da uva com benefício a um dos grandes do vinho do Porto). Já plantaram vinha nova, há dois anos, uma pequena área (menos de um hectare, a 735 metros) junto à adega, que fica a uns 5km do Vale do Olmo. E até Março têm de decidir o que plantar em três hectares que têm a 750 metros de altitude, já na Beira (IG Terras da Beira), na transição do xisto para o granito. Aqui não pode ser DOC Beira Interior? Perguntamos. “Não, mas não interessa, é Mêda e é um terroir espectacular.”
Antes da II Guerra Mundial, a Mêda não era Douro, o concelho só passou a integrar a região depois de as barragens terem feito subir o nível da água do rio e passar a contar essa cota e não a do nível do mar. Nos anos 1970, era terroir de três grandes: para além do Douro, as Beiras e o Dão. Hoje, é território de duas regiões vitivinícolas, mas isso é apenas o que diz o seu bilhete de identidade. Os vinhos da Mêda, e os vinhos de Rui e Vasco, falam por si.