Enfermeiros para canhão

Muitos e muitas enganaram-se na escolha do curso, só assim se explica a frieza e por vezes irritação com que se dirigem a alguns pacientes. Mas a grande maioria é de uma entrega total.

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"A verdadeira luta dos enfermeiros e das enfermeiras, trava-se nas dezenas de enfermarias espalhadas pelo nosso país, é a luta contra a dor Tiago Lopes/Arquivo
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Florence Nightingale, destacada enfermeira inglesa do século XIX, definiu a enfermagem como uma arte e para realizá-la como arte, afirmou ser necessário uma “devoção tão exclusiva, um preparo tão rigoroso, quanto a obra de qualquer pintor ou escultor; é uma das artes; poder-se-ia dizer, a mais bela das artes!”. Arte, profissão, vocação, ciência de devoção ao doente, ofício vocacionado para o alívio da dor física e do sofrimento mental, proporcionando conforto. Enfermagem, uma definição sempre incompleta, mas seguramente refém de um traço de caráter: a bondade.

Ergueu-me sem nunca me fixar, o enfermeiro que estava de serviço naquele turno, acompanhando-me ao quarto de banho, e poisando suavemente as minhas pernas na loiça fria da sanita. Já lá vão três anos, desse momento e de outros, em que me desliguei como paciente e me apeteceu retratar tudo o que vivi na enfermaria 4. Uma rotina pesada, de gestos e levantamentos, mas sobretudo de ambiente. Cabeças raspadas, olheiras, dores causadas pelas cirurgias e pelo impacto que deixam.

E eles e elas, ali, para nos içarem o corpo e a alma. Os enfermeiros e enfermeiras, em Portugal, serão das classes mais mal pagas, mais injustiçadas. Sei bem que nem todos os profissionais de enfermagem desempenham com amor o seu ofício. Muitos e muitas enganaram-se na escolha do curso, só assim se explica a frieza e por vezes irritação com que se dirigem a alguns pacientes. Mas a grande maioria, e foi com essa maioria que lidei, é de uma entrega total, mesmo sabendo que ao final do mês, o que dão de si, está longe de refletir uma justa compensação salarial.

Pouco mais de mil euros mensais, dizem-me, mesmo fazendo noites. Muitas/os emigram, outros insistem no talento e no curso que realmente queriam. “Você é tão boa enfermeira que devia ser médica.” Mas Sandra não quer ser médica. Sandra quer continuar a ser enfermeira. Era o seu sonho desde os 5 anos, e uma fotografia vestida com uma bata e estetoscópio, num desfile de carnaval da escolinha, confirma-o. Continuar a visitar e a tratar os doentes que estão acamados há demasiado tempo é a sua rotina e o sonho de uma vida concretizado. Tirou uma formação extra, paga pelo seu próprio bolso para que pudesse aliviar com mais eficácia a dor física e mental de quem sofre.

O não-reconhecimento das competências técnicas, científicas e humanas, a par da questão da formação e do investimento pessoal, seja em pós-graduações, especialidades, mestrados, doutoramentos, e para muitos apenas, a formação de competências acrescidas como a Ordem veio designar, obriga a deslocações, poucas vezes suportadas pelos hospitais.

A evolução da enfermagem com produção de investigação e cada vez mais titulares de graus académicos superiores, não foi acompanhada de um verdadeiro reconhecimento, quer pelo ministério quer por outros pares. Mas há outros motivos de insatisfação. Um sistema de avaliação de desempenho que não premeia os melhores nem na quantidade nem na qualidade, porque as quotas de avaliação não dão justiça e impedem essa valorização mais efetiva.

Enfermeiras/os de quadro e enfermeiras/os de contratos com décadas, que não têm os mesmos direitos, mas têm os mesmos deveres. A própria classe, sujeita a germinação de sindicatos novos, expressa uma divisão e um passar de culpas, não contribuindo para uma perspetiva interna de união.

Mas a verdadeira luta dos enfermeiros e das enfermeiras, trava-se nas dezenas de enfermarias espalhadas pelo nosso país, é a luta contra a dor. Não hesitam e são práticos na hora de agir. Não cruzam os braços, porque os suspiros que ouvem no corredor, podiam ser os dos seus pais. Sabem que a vida pode ser bela e perfumada, mas que também pode ser feia e ter mau odor. Pressentem a morte e a vida que chega.

Os enfermeiros e enfermeiras deste país estão a ser tratadas/os como carne para canhão. Alguns e algumas desdobram-se em part-times, comprometendo a vida pessoal e familiar. Sentem-se desvalorizados/as pela sociedade civil, num trabalho que é único e só digno daqueles/as que independentemente de todas as condições, permanecem como anjos, do nosso lado.

Ana é enfermeira e todos os dias, antes de sair do seu turno, massaja as pacientes oncológicas, sem que lhe seja pedido. Fá-lo por amor e só por amor se entende que continue a ser enfermeira em Portugal.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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