O râguebi português criou um “monstro”
Parece ter sido há muito, muito tempo, mas aconteceu a 13 de Março de 2022. Em Madrid, num duelo ibérico no Rugby Europe Championship, decisivo na qualificação europeia para o Mundial 2023, Portugal foi derrotado pela Espanha (33-28) e falhou, pela quarta vez consecutiva, o apuramento para o principal palco do râguebi internacional. Um ano e meio depois, esse desaire, que relegou os “lobos” para o 4.º lugar do apuramento, a 18 pontos da líder Geórgia e atrás de espanhóis e de romenos, é uma recordação que se perde na memória de qualquer adepto da modalidade. Afinal, os “lobos” são a selecção do momento.
Mas como é que uma equipa que não garante o apuramento dentro do campo – perdeu quatro dos 10 jogos da qualificação - e apenas disputou uma repescagem após a Espanha ser penalizada, hoje é tão admirada? Como é que Portugal passou a ser o país que todos queriam ver no Mundial? A resposta está nas idiossincrasias do râguebi: a elite que agora tanto elogia Portugal, é a mesma que não permite que ninguém coloque em causa a sua regência.
Há uma pergunta que ajuda a explicar um dos pecados do râguebi: “Em que modalidade não existe um Campeonato Europeu?” No râguebi, a principal prova organizada pela federação europeia (Rugby Europe) é conquistada, quase todos os anos, pela Geórgia. Isto porque há os países da elite. E esses, os das Seis Nações, não se misturam com os outros. A prova é privada e os seus organizadores ganham muito dinheiro. E o dinheiro coloca muitos “valores” na gaveta.
Nas últimas semanas, passou a ser comum ver-se fotografias dos “lobos” em lugares de destaque em jornais como o L’Equipe ou o The Guardian. Sempre acompanhadas de elogios. Porém, quase 90 anos depois de fazer o seu primeiro jogo oficial, Portugal continua a não ter no currículo duelos com a Inglaterra e, contra a França, disputou o último em 1987.
A separação de poderes – a elite e os outros - estende-se aos clubes. O campeão de Portugal em momento algum terá possibilidade de jogar na European Rugby Champions Cup. Na época 2022/23, a principal prova europeia contou com 24 clubes. Oito ingleses, oito franceses, três irlandeses, um escocês, um galês e… três sul-africanos. Qual é a hipótese de uma equipa portuguesa, espanhola ou georgiana entrar? Ultrapassando, se necessário, eliminatórias? Nenhuma.
Mas, afinal, onde é que a altivez do râguebi internacional se cruza com o 13 de Março de 2022? Num ponto que seria impensável acontecer, por exemplo, no futebol: a World Rugby despreza a protecção às suas selecções. Assim, no râguebi não existem datas para os jogos internacionais, onde é imposto a paragem dos campeonatos profissionais. Para os franceses, não é um problema: por qualquer jogador que seja cedido à selecção, um clube gaulês recebe da sua federação 25 mil euros.
Com isto, mesmo estando a decorrer o Mundial em França, o Top 14, o campeonato na Europa com mais qualidade – e dinheiro -, já leva três jornadas. E será isto que vai acontecer em Fevereiro: as competições profissionais de clubes não param com o arranque do Torneio das Seis Nações.
Assim, quando federações com poucos recursos, como a portuguesa, começarem dentro de quatro meses a competir nas provas da Rugby Europe – nos dois anos anteriores aos Mundiais funcionam como qualificação –, será realisticamente impossível repetir-se o cenário deste Mundial: durante quatro semanas, os “lobos” terem os seus melhores jogadores disponíveis em todos os jogos.
A partir daí, começa o encaixar de peças no puzzle e o tentar gerir, da forma possível, a disponibilidade de jogadores para cada duelo. É que embora esteja regulamentado que os clubes são obrigados a libertar os seus atletas, na prática isso é habilmente contornado. Jogando a maioria dos melhores portugueses na Pro D2, a segunda divisão francesa, e tendo os mesmos por norma contratos de curta duração, torna-se simples para um clube chantagear um atleta: a sua ausência em momentos importantes, condiciona a renovação do contrato. Isto resulta num quebra-cabeças para federações onde o dinheiro é escasso – as mais poderosas financeiramente, resolvem o problema com as compensações aos clubes.
Desta forma, o “monstro” mediático que o râguebi português criou pode ser grande demais para a realidade de um desporto que nas provas internas não fugirá tão cedo ao amadorismo e a um nível medíocre, e que, a nível internacional, continuará a ser placado pela elite.
A partir de Fevereiro, ver-se-á com que “lobos” ficou râguebi nacional: os que conquistaram adeptos de todo o Mundo ou os que perdem duas vezes com a Roménia, a mesma selecção que saiu do Mundial 2023 com quatro derrotas e uma média de 72 pontos sofridos por jogo.