Até nas rendas são elas as mais prejudicadas

As mulheres ganham menos, são mães sozinhas, são mais vezes vítimas de violência doméstica do que os homens. Quando os preços disparam, vêem-se obrigadas a escolher entre o abuso e um tecto.

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Megafone P3: Até nas rendas são elas as mais prejudicadas Pexels/ João Jesus
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As crises não são democráticas. Assim foi com a covid-19, assim está a ser com a crise na habitação afectam (quase) toda a gente, mas não afectam toda a gente da mesma maneira. Quem já está no fundo da escada da igualdade é ainda mais empurrada para lá ficar pelos valores chocantes de rendas e de empréstimos. É o que acontece com as mulheres, e trago-vos vários dados da Comissão para a Igualdade de Género que não podemos ignorar.

Vivemos num país onde persiste a desigualdade salarial: em 2019 estava nos 14%. Pelo mesmo trabalho realizado, quando um homem aufere 1069 euros, uma mulher recebe 920 euros. E esta diferença aumenta quando o nível de habilitações e de qualificações ou responsabilidade é superior. Ao mesmo tempo, percebemos que o risco de pobreza é maior nas mulheres do que nos homens. No mesmo ano, era de 15,1% para as mulheres e de 14,6% para os homens.

Parece uma diferença pouco significativa, mas estamos a falar de milhares de pessoas. Na pesquisa destes dados deparei-me também com uma referência pouco divulgada, mas que neste caso é bastante ilustrativa: a taxa de privação material tem sido sempre superior entre as mulheres do que entre os homens esta é uma taxa que diz respeito à "ausência forçada de uma combinação de itens que descrevem as condições de vida material, como as condições de habitação".

A matemática é simples de fazer: quando sobem os preços, quem tem menos dinheiro sai mais prejudicado. E se a estas contas juntarmos questões sociais como as famílias monoparentais e a violência doméstica vemos quem fica ainda mais a perder. Em cada cinco famílias monoparentais, mais de quatro têm uma mulher como progenitora (84,7%). Para esta realidade nem era necessário trazer estatísticas: basta olharmos à nossa volta e identificamos muito mais mães a cuidar praticamente sozinhas dos filhos do que homens a fazê-lo. Sendo mães solo, é sobre elas que recai a responsabilidade de alimentar, cuidar e de dar um tecto se o ordenado permitir.

Em momentos de dificuldade, o contexto força-nos a fazer escolhas, algumas delas muito violentas para a nossa saúde mental. Com os valores de rendas e empréstimos praticados actualmente, sabemos como a solução passa frequentemente por comprar/arrendar casa em casal. Tudo bem quando a relação flui de forma saudável, mas quando há a vontade de separação, o expectável é ter a liberdade de sair e recomeçar sozinha/o.

Quem tem um salário mais elevado está numa posição privilegiada para poder fazê-lo de acordo com os dados, são mais vezes os homens. Mas vamos ao flagelo da violência doméstica: a maioria das vítimas são mulheres (75%) e a grande maioria dos denunciados são homens (81,4%). Sabemos como é incentivado às vítimas que "saiam de casa", que "fujam", e como tantas vezes essas mesmas vítimas "escolhem ficar". Novidade: não é uma escolha. É muitas vezes a única possibilidade para quem não tem um rendimento que lhe permita sobreviver e cuidar dos seus filhos.

Conhecemos mães, tias e avós que se arrastaram em casamentos violentos porque era o homem quem "trazia o dinheiro para casa". Porque era dele que dependia o sustento delas e da família. Dinheiro é poder, e é um poder que se acentua numa crise como estas. É um poder que deixa as mulheres presas a situações de violência, humilhação, ausência de futuro e de liberdade.

Esta visão do género sobre a crise na habitação já foi analisada pelo município de Londres, e salienta aspectos que se coadunam com a realidade portuguesa. Se estamos a falar da discriminação das mulheres, podemos ainda sublinhar o impacto nas mães solo negras, nas mulheres LGBT que, só pela sua identidade, já enfrentam obstáculos independentemente das crises.

Há que olhar para estas realidades específicas, e trazer soluções que respondam às suas necessidades. Como escrevia George Orwell n'O Triunfo dos Porcos, somos todos iguais, mas alguns são mais iguais do que outros. Categoricamente mais iguais, como nos provam os tempos que vivemos. A evolução dos direitos das mulheres e da eliminação da discriminação não é linear, e sofre em 2023 mais um golpe gigante que servirá de análise daqui a uns tempos.

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