Quase uma década depois de se despedir do quarto da adolescência em casa da mãe, Diogo voltou. Com ele, uma sensação de falhanço. Sentia-se um fardo, “num sítio onde não era bem-vindo”. O desconforto tornou-se uma “dor crónica”, “sufocante”, que atinge aos fins-de-semana a fase mais aguda: quando se deita para dividir a antiga cama de solteiro com o filho de seis anos.
“Não era o que esperava, ter 40 anos e estar nesta situação. Mas vi-me de mãos atadas”, conta, ao recordar tudo o que mudou na sua vida quando se separou da ex-companheira, com quem partilhou casa durante oito anos.
Diogo, que prefere não partilhar o apelido, saiu de casa em Maio passado. Há meses que sabia que a relação não estava a correr como desejava, mas, sem alternativa de habitação e para ficar perto do filho, “aguentou”. “Só fiquei por ele”, reconhece.
Quando pediu ajuda à mãe, com quem nunca teve uma relação fácil, surpreendeu-se ao perceber que, à partida, poderia regressar à antiga casa. Mas esse ânimo rapidamente esmoreceu: “Encontrei um cenário onde não sou desejado. Tenho um quarto, mas não um lar.”
A crise no mercado habitacional tem mantido em suspenso a vida de casais que decidem separar-se, seja pela dificuldade em encontrar nova morada que consigam pagar, seja pelo regresso a casa dos pais (em alguns casos, inevitável) ou pela ausência de soluções.
Diogo já desistiu da ideia de viver no concelho de Lisboa. Mesmo assim, e com um trabalho estável, sabe que precisa de “um balão de oxigénio” antes de pensar em fazer as malas. “Decidi tirar a licença de TVDE, trabalho que terei de juntar às sete horas no meu emprego. Também vai ser uma forma de fugir de um ambiente hostil em casa. Já que Lisboa vive do turismo, e que também é ele que me está a dificultar a vida, porque não aproveitar?”
Para a psicóloga Soraia Queijo, terapeuta familiar e de casal, voltar para casa dos pais na idade adulta é “como perder o poder de decisão sobre a própria vida”, e há sinais a que é importante estar atento, mesmo quando se entra em “modo sobrevivência”: podem existir períodos de maior tristeza, choro mais frequente ou perda de interesse pelas actividades diárias. “Não é algo que alguém de 40 anos deseje. Não era suposto ninguém passar por isso.”
E quando voltar a morar com os pais não é opção?
Para Alexandra Monteiro, ao contrário de Diogo, voltar para casa dos pais é uma hipótese que deixou há muito de estar em cima da mesa. Oito meses depois de terminar um namoro que já se tinha arrastado por demasiado tempo, ainda partilha o mesmo tecto com o ex, numa casa que só parece encolher e onde não cabem as novas vidas dos dois.
Aos 35 anos, está a terminar um estágio na área de programação que lhe dá alguma esperança para o futuro, depois de ter ficado desempregada por causa da pandemia.
“Já estive pior, agora estou mais esperançosa. Mas há dias em que não vejo solução”, admite Alexandra. “A dada altura cheguei a pedir ajuda à minha mãe, que me respondeu: ‘Quando me chateava com o teu pai não ia pedir guarida.’ Aí senti-me desamparada, e decidi que voltar não seria bom, nem para mim, nem para eles.”
Nesse momento, sem o apoio da família, sem estabilidade laboral, e numa relação que não estava a correr bem, viu-se num beco sem saída. “A minha cabeça esteve num lugar mais depressivo, cheguei a pensar em suicídio”, conta. “De repente senti-me sozinha, sem certezas sobre nada. Os pilares da vida são um tecto, trabalho e relações interpessoais. E tudo isso foi destruído, como numa avalanche.”
Dividir casa com um ex-companheiro é, antes de mais, confuso, diz a psicóloga Soraia Queijo. “Se duas pessoas terminam uma relação é porque não querem estar juntas, e serem obrigadas a permanecer onde não querem estar é de uma exigência emocional e psicológica imensa”, explica.
Mesmo que continuasse a viver em Loures, nos arredores da cidade de Lisboa, um ordenado mínimo não seria suficiente para viver sozinha num T0 ou T1. Depois de muita pesquisa “desesperante” que, dia sim, dia sim, a desiludia, desistiu de percorrer constantemente sites como o portal imobiliário Idealista.
Em 2022, quando Alexandra começou esta procura por algo que hoje parece uma miragem, os preços das casas vendidas em Portugal aumentaram ao ritmo mais acelerado de que há registo (desde 2009): quase 13% num ano.
Embora o ano passado também tenha sido aquele em que mais casas se venderam em Portugal, no segundo semestre essa tendência abrandou, devido à subida das taxas de juro e quebra de rendimentos das famílias.
Se fizermos o mesmo percurso de Alexandra e entrarmos no portal Idealista, o preço médio por metro quadrado em Loures é de 3213 euros. Ou seja, uma casa com 50m² custaria, em média, 160.650 euros. Na mesma lógica, se essa casa fosse arrendada, custaria, em média, 754 euros por mês – ou seja, um salário mínimo nacional.
“Isto acontece à classe média, ao casal em que cada um ganha mil euros”
Miguel (nome fictício) viveu com a ex-namorada quase dois anos. Durante meses, assistiu à degradação da relação, à medida que se apercebia de que algo não batia certo. No último Verão, quando teve a sensação de estar a ser enganado, confrontou-a. Ela negou, mas o namoro não voltaria a ter a força de outros tempos.
“Ela tem uma doença mental grave e existiram momentos em que a relação estava muito deteriorada. Eu estava a sofrer e quis acabar. Mas e a casa? Isso pesa na decisão”, conta. A namorada tinha vivido num contexto abusivo em casa da família, por isso, até encontrarem uma solução, foi Miguel a mudar-se para casa da mãe.
A estadia provisória foi-se prolongando. Primeiro um mês, depois dois meses. As alternativas, essas, continuavam por aparecer.
A vida em conjunto tinha deixado de ser uma hipótese, mas nenhum dos dois podia pagar sozinho a renda da casa onde viviam, um T2 no centro de Lisboa, que tinham arrendado por um valor mais baixo do que o normal por causa da pandemia.
Aos 24 anos, os rendimentos de Miguel ultrapassam, em várias centenas, o salário da maioria dos jovens portugueses. Enquanto, em 2022, 65% dos jovens abaixo dos 30 anos recebiam menos de mil euros por mês, o ordenado mais baixo que já teve, afirma, foi de 1200 euros a recibos verdes. “Não devia ter problemas [em pagar uma casa sozinho]. E se eu tenho, imagino quem ganha menos”, diz, reconhecendo algum privilégio.
Ana Morais Cardoso, advogada na área de direito de família, identifica uma mudança do perfil de quem a procura por dificuldades no processo de separação. “Hoje isto acontece à classe média, ao casal em que cada um ganha 1000 euros e que tem uma renda de 800 euros – nenhum deles consegue pagar casa [sozinho]”, afirma. “Noto pela diversidade de pessoas, que antes não era habitual: contabilistas, gestores, enfermeiros, professores.”
Depois de regressar ao T2 onde a ex-namorada continuava, Miguel viveu semanas num ambiente “tóxico”. No mesmo dia em que confirmou as antigas suspeitas e percebeu que lhe tinha sido contada uma série de mentiras, ela saiu de casa. Não voltaram a conversar.
Hoje divide o mesmo apartamento com um amigo, mesmo depois de o senhorio aumentar a renda em 25% face ao valor inicial. “É um bom negócio, tendo em conta a zona”, considera, ainda que custe mais de 900 euros por mês.
“Fiz parte do luto da relação em casa da minha mãe, mas foi tudo por água abaixo quando voltei. O dia em que ela saiu foi como um segundo final da nossa relação”, recorda. “E ainda tive de aprender a lidar com continuar a viver na casa que tínhamos partilhado. Desde aí que não consigo lá estar com outra pessoa, nunca levei lá ninguém.”
O luto de uma relação, diz a psicóloga Soraia Queijo, traduz-se num processo de reconstrução, “um repensar de si e do outro”. “Quando tem de se partilhar casa, o luto fica comprometido, não há distanciamento físico, emocional, nem a construção de uma nova vida sem a outra pessoa.”
Independência financeira e igualdade de género
Ainda que agravado pela crise habitacional e pela galopante inflação, este não é um problema novo nem se limita a casais no início de uma vida em conjunto. Aos 60 anos, Margarida (nome fictício) vive separada há mais de 20, mas continua na mesma casa com a pessoa com quem se casou e de quem nunca se divorciou oficialmente.
Dedicou a vida a cuidar dos filhos (que entretanto já se fizeram adultos), sem nunca ter conseguido acabar o curso de Medicina e sem ter tido um emprego estável. As ambições da juventude eram bem diferentes, mas a vida complicou-se e as prioridades mudaram. Margarida foi diminuindo, diminuindo, até se anular quase por completo.
Reconhece na sua situação uma história anacrónica, mesmo que, uma geração mais tarde, a igualdade de género continue uma utopia. “Não conheço ninguém na mesma situação que eu no século em que vivemos. Era comum na geração dos meus pais, em que as mulheres viviam dependentes do homem e por isso não se divorciavam, em que o trabalho delas era estar em casa e cuidar dos filhos.”
O aumento do custo de vida afecta, de modo particular, as mulheres: são elas que têm, por norma, salários mais baixos; que estão em minoria nas posições de liderança; que gastam uma maior percentagem do ordenado em alimentos e noutras compras para a casa.
No ano passado, 2022, a diferença salarial entre homens e mulheres em Portugal era de 13,3% na sua base mensal, e de 16,1% no valor ganho por hora. Estima-se que sejam precisos mais 30 anos para acabar com esse fosso salarial no nosso país.
Quanto a trabalho não pago, as mulheres continuam a dedicar, em média, mais duas horas por dia a tarefas domésticas e à prestação de cuidados, em comparação com os homens. Heloísa Perista e Pedro Perista, do CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social, calcularam o valor deste trabalho e o peso que teria na criação de riqueza a nível nacional. Se o valor de referência for o ganho médio horário no país, só em 2019, o trabalho doméstico e de cuidados representaria 78 mil milhões de euros — uma subida de 36,2% do PIB.
“Eu fiz imenso, fiz muito pelos meus filhos. Mas quem não tem um trabalho, não tem valor”, diz, revendo em segundos as últimas seis décadas de vida. Nem quase 30 anos na mesma morada a tornaram mais acolhedora para Margarida, que foi alimentando a esperança de que esse tecto fosse apenas provisório.
No último ano, Soraia Queijo notou um aumento de casos como este, em que a dependência financeira impede uma separação. E não foi a única: a advogada Ana Morais Cardoso também encontra vários cenários que se vão tornando mais frequentes, de pessoas que não podem separar-se por não terem outra casa para onde ir, a casais separados que, a viver na mesma casa, têm de gerir a guarda dos filhos.
Quando um casal se separa – e, relembra, a protecção dada a quem é casado e a quem nunca casou é a mesma –, o tribunal tem de atribuir a casa de morada de família, mesmo que exista um proprietário (que pode não ficar com a casa) ou que apenas um dos dois tenha o nome no contrato.
“Como é que um deles vai sair, pagar uma casa, pagar pensão de alimentos? Se a única solução for ir para um abrigo, é suposto alguém ficar acampado com filhos menores e a viver com outras famílias?” questiona. “[Conheço] um casal com três filhos que vive junto e o marido não deixa que a mulher jante à mesa com as crianças quando é a sua semana de estar com elas.”
Margarida admite que um dos motivos para não ter avançado com o processo de divórcio, além de o marido nunca ter concordado (algo que hoje já não é necessário), foi a preocupação de proteger os filhos.
Há muitos anos que a relação com o ex-companheiro é distante e o convívio apenas circunstancial. Têm rotinas diferentes, vêem-se pouco, conversam ainda menos. Diz que só depois de casar percebeu que pensavam de forma totalmente oposta: ela adorava a liberdade, ele achava que o lugar da mulher era em casa.
Entre sucessivas desilusões e a total dependência financeira do marido, sentiu várias vezes que "a vida andava para trás, em vez de para a frente”. Teve várias depressões, foi acompanhada por vários médicos. “Um dia disse ao meu psiquiatra: 'Sinto-me sem-abrigo’."