Quando a minha prima Cátia começou a vir para nossa casa nas férias da escola, não me recordo que idade tínhamos, mas sei que não passávamos ambas da altura de um arbusto e que a nossa vida, mais a dela do que a minha, já vinha atravessada por inúmeras adversidades.
Se em minha casa não habitava a fartura constante do frigorifico nem existia um guarda-vestidos a que se pudesse dar esse nome — porque um armário com roupa amontoada até ao topo não é digno de guardar nada, sejam calças ou vestidos —, na casa da Cátia, mais propriamente o apartamento da minha avó, faltava-lhe tudo e mais aquilo que nem eu nem a Cátia imaginávamos que coubesse na palavra casa.
Não tinha direito sequer a que lhe deitassem um olhinho de vez em quando, como se faz à sopa ao fogão. E a Cátia ia crescendo, correndo o mesmo perigo de se pegar ao fundo do tacho e às traseiras da vida.
Esse olhar de atenção que me era lançado em frequência espaçada na minha casa, a Cátia só o recebia ainda mais espaçadamente da minha mãe. Nos dias de férias da escola que partilhávamos em minha casa, a minha mãe cuidava da Cátia com atenção.
Eu via-a comover-se com o desamparo e a infestação de piolhos da Cátia. Aquele olhar de carinho e enternecimento nunca o vi cravá-lo em mim. Na altura sei que gostava de ter recebido uma migalha dessa pena materna.
Eu observava o cuidado que a minha mãe lhe dava e cobria-me de um silêncio gerado pelo ciúme que só conheci por causa da Cátia. Era uma cobiça passiva, quase imperceptível para mim própria, mas que entendo hoje ter sido exactamente a minha apresentação a esse sentimento.
Eu entendia, com a possibilidade que a idade me permitia, que a Cátia precisava mais daquela mãe que eu nem sequer conhecia e que se revelava só para ela. Talvez a Cátia transportasse a minha mãe para a sua própria infância, para o mesmo abandono de uma casa cheia de adultos tristes. Embora a minha casa também fosse habitada por crescidos desgostosos, mas em menor número.
A chegada da Cátia à nossa casa era um ritual que já conhecíamos e que passava por a minha mãe lhe cortar o cabelo curto, que saía sempre à tigela e torto, como um frade cujo corte tivesse sido executado por algum barbeiro bêbedo.
A verdade é que tinha graça porque a Cátia era bonita, mais bonita do que eu, e com a franja torta a sua cara parecia ainda mais perfeita. Qualquer roupa e penteado lhe ficavam bem e até mesmo com o cabelo barrado com Quitoso, que cheirava mal e me dava vómitos, a minha prima mantinha o estilo simultaneamente amoroso e rufia que lhe dava uma graça singular.
Normalmente a tarefa de extermínio dos piolhos corria com eficácia, embora eu, a minha irmã e até a mãe, que sempre teve uma juba atreita a bichos, ficássemos muitas vezes com um souvenir da nossa prima plantado nas crinas. E tínhamos de ir todas ao banho de Quitoso e passar novamente pelo castigo do vómito.
A Cátia ocupava o lugar da criança desprotegida em minha casa. Ocupava a atenção da minha mãe durante as férias, como uma visita para qual a mãe se esmerava a fazer de mãe. Nunca me queixei disso. Eu entendia que a vida da Cátia era pior do que a minha e gostava dela porque era graças a ela que eu conseguia ver o amor da minha mãe soltar-se na direcção de uma criança.