A semana em que o Salvador apareceu na escola de gravata
Tudo isto faz parte das histórias autênticas e de uma grande humanidade que transformam a escola num lugar privilegiado para tornar as crianças melhores pessoas.
Há semanas que nos correm mesmo ao contrário daquilo que planificámos. Foi precisamente o que aconteceu quando o Salvador, de seis anos, na segunda-feira de manhã apareceu na escola(*) todo aperaltado com uma gravata. Quando os colegas lhe perguntaram por que vinha assim vestido, não hesitou: vinha de gravata porque se queria casar!
O Salvador até já tinha escolhido a noiva e não tinha feito as coisas por menos: tinha eleito a Beatriz, uma menina loira de olhos claros, toda bonita. O problema é que a Beatriz, que não tinha sido tida nem achada na história do casamento, estava num pranto, sentada num dos cantos da sala. No outro canto, chorava o Salvador, com grandes lágrimas de desolação, porque a Beatriz não queria casar com ele. Sentados nos respetivos lugares, os colegas batiam com as mãos nas mesas e incentivavam: “Casa, casa, casa!”
Com a planificação da semana na mão, eu olhava para uns e para outros e não sabia o que fazer. Sim, porque os professores às vezes não sabem o que fazer! A prática pedagógica está repleta de desafios, de imprevistos e de casos que não foram abordados nos cursos de formação nem na literatura recomendada. E, além de estarem a lidar com situações novas, os docentes têm de lhes dar uma rápida resposta. As crianças não ficam à espera que, depois de muito refletirem, os professores tomem uma decisão: a decisão tem de ser tomada no momento.
Para contextualizar este episódio, tenho de acrescentar que o Salvador era um menino guineense a quem tinha acabado de falecer o pai, deixando a mãe com cinco filhos menores. Mergulhado no seu desgosto, não estava a conseguir lidar com o sentimento de rejeição. Por seu lado, a vontade da Beatriz tinha de ser respeitada e a sua família poderia não gostar que a menina se sentisse pressionada.
Encostei-me por momentos ao quadro da sala de aula à espera de uma inspiração que me permitisse resolver aquela situação, sem magoar os sentimentos do Salvador, nem tão pouco os da Beatriz. A inspiração, felizmente, chegou! Perguntei aos meus alunos: “Sabem que no teatro as coisas podem não acontecer a sério?” Sim, sabiam, segundo responderam. Então desafiei-os: “Então e se fizéssemos um teatro do casamento do Salvador e da Beatriz?”
Todos concordaram, incluindo os próprios, e deitámos mãos à obra para preparar o casamento que, de acordo com o que combinámos, seria no último dia da semana. Entretanto, havia muito a fazer! Tínhamos de escolher o padrinho e a madrinha, de acertar o alinhamento da cerimónia, de arranjar o padre, de contratar o fotógrafo e, claro, não podíamos esquecermo-nos do arroz nem das flores para atirar aos noivos. As famílias também foram envolvidas para providenciar os trajes de cerimónia para o evento.
Desafiada para participar nesta iniciativa, a professora da biblioteca sugeriu que, ao longo dessa semana, trabalhássemos o livro O casamento da gata, com texto de Luísa Ducla Soares e ilustrações de Pedro Leitão, como ponto de partida para o teatro do casamento. Assim foi.
Ao longo da semana, lemos a história, preparámos as fatiotas e ensaiámos a cerimónia. Aproveitámos para trabalhar, de uma forma interdisciplinar, todas as áreas do currículo, como uma renovada motivação, a partir das propostas feitas pelos alunos.
Na área do Português, trabalhámos a área vocabular dos animais que apareciam na história, aprendemos a escrever os seus nomes e identificámos as palavras que rimavam nas quadras, desenvolvendo a consciência fonológica. Na área da Matemática, contámos os animais que apareciam no livro e aprendemos os números ordinais. Na área de Estudo do Meio, falámos nos animais, nas suas caraterísticas e nos respetivos regimes alimentares. Na área das Expressões, desenhámos, fizemos teatro e tirámos fotografias.
No dia do casamento, o Salvador não podia estar mais feliz. De fato de treino e gravata, era o mais orgulhoso dos noivos. A Beatriz estava linda de véu e grinalda, e os padrinhos também estavam trajados a rigor. O teatro do casamento foi um sucesso e, no final, avaliámos a nossa semana de aulas que, segundo as crianças, não podia ter corrido melhor.
Tudo isto parece e é uma brincadeira. Mas é mais do que isso. Faz parte das histórias autênticas e de uma grande humanidade que transformam a escola num lugar privilegiado para tornar as crianças melhores pessoas. É esta a verdadeira Educação para a Cidadania, assente na empatia, nos valores, no respeito pelo outro, no envolvimento e na partilha.
Mas esta prática também faz parte intrínseca do currículo escolar, nomeadamente daquilo a que o sociólogo e antropólogo Philippe Perrenoud chama currículo oculto. Este distingue-se do currículo formal, expresso em diretrizes curriculares, objetivos e conteúdos disciplinares, bem como do currículo real, que se traduz na aplicação prática do que foi prescrito. Na distância que vai do currículo formal ao real, surge aquilo que este autor denomina como currículo oculto.
Este último tem como ponto de partida novas situações não previstas nem planeadas que surgem no quotidiano escolar, dependendo da dinâmica de sala de aula. O professor tem um papel fundamental neste contexto, cabendo-lhe a sensibilidade de dar seguimento a um acontecimento ou assunto desencadeado pelos alunos que, não tendo sido planificado, se torna relevante para a formação pessoal das crianças e para a sua relação com os pares.
São precisamente as semanas em que a planificação fica virada do avesso que considero verdadeiramente bem conseguidas. Claro que, na semana seguinte, temos de retomar o que estava planificado, para repor o equilíbrio nas aprendizagens previstas. Até que voltemos a ser surpreendidos pelos alunos e nos deixemos conduzir novamente pela mão do inesperado…
(*) Escola pública
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990