Senado brasileiro aprova lei que retira direito à terra aos povos indígenas
Forças ruralistas aprovaram legislação que reconhece o marco temporal, um conceito rejeitado pelo Supremo Tribunal Federal, que abre à exploração terras indígenas.
O Senado brasileiro aprovou um projecto-lei que estabelece o marco temporal das terras indígenas, contrariando a decisão do Supremo Tribunal Federal, que considerou que a tese de que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras nas quais se encontravam a 5 de Outubro de 1988 – data da promulgação da Constituição – não é válida. Organizações indígenas e de defesa do ambiente apelam a um veto do Presidente, Lula da Silva.
Há um confronto de poderes entre os deputados que defendem os interesses dos ruralistas no Congresso (a câmara alta e a câmara baixa do Parlamento) e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em torno do que são bens preciosos: terras indígenas na Amazónia ou outros locais no Brasil, ainda grandemente preservadas, mas que podem ser ricas em recursos minerais, como ouro (por exemplo, as do povo yanomami) ou simplesmente apetitosas para desbravar e transformar em explorações agrícolas, aumentando a desflorestação.
Há proprietários rurais que têm títulos de posse sobre partes das terras indígenas – em grande parte associada à “grilagem”, uma “prática criminosa que envolve invadir, ocupar, lotear e obter ilicitamente a propriedade de terras públicas sem autorização do órgão competente”, segundo a definição do Fundo Mundial da Natureza (WWF) Brasil.
Através do Projecto-ei 2903, os senadores que defendem os interesses ruralistas pretendem que seja considerado o marco temporal – tese que o STF rejeitou – e também que sejam legitimadas invasões de terras indígenas. Essas terras passam a estar disponibilizadas para arrendar ao agronegócio e iniciar grandes projectos com alto impacto ambiental, como a construção de hidroeléctricas, mineração, abertura de estradas e caminhos-de-ferro.
Povos indígenas poderiam ser expulsos das terras que ocupam, se não comprovassem que estavam lá na data da promulgação da Constituição de 1988. Não seria levado em consideração se esses povos tivessem sido expulsos ou forçados a sair dos seus locais de origem durante os tempos da ditadura brasileira, explica o site G1.
Põe igualmente termo à política da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) de não-contacto com grupos isolados. Empresas e missões de evangelização poderão fazer contacto com esses povos, que querem manter-se à parte da civilização.
O projecto-lei aprovado agora pelo Senado permite também contestar a demarcação de novas terras indígenas “em qualquer momento do processo, decretar a suspeição de antropólogos no exercício do seu trabalho”, diz um comunicado de imprensa do Observatório do Clima, uma plataforma de organizações de defesa do ambiente no Brasil.
Ignorar crimes da ditadura
“O PL 2903 ataca o coração do próprio conceito de terra indígena. Em vez de ser um bem indissociável do modo de vida desses povos, as terras se tornam uma mercadoria que pode ser comprada, vendida e arrendada”, diz o comunicado. Permitirá ao Estado retomar “reservas indígenas” se se verificar “alteração dos traços culturais” da comunidade” – algo que é considerado “um dispositivo racista que fede às teses de ‘integração do índio’ da ditadura militar”, diz o Observatório do Clima.
O marco temporal é uma tese jurídica
Marco temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de Outubro de 1988, data de promulgação da Constituição brasileira. A tese surgiu em 2009, em parecer da Advocacia-Geral da União sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima
“O Senado quer perpetuar o genocídio indígena. Esse projecto-lei legaliza crimes que ameaçam as vidas indígenas e afectam a crise climática”, reagiu Kleber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), uma das organizações que integra o Observatório do Clima.
O mesmo disse o Conselho Indigenista Missionário [um organismo ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, da Igreja Católica. Este projecto-lei afronta a decisão do STF, mas não só. “Propõe que o Estado ignore os crimes que foram cometidos contra os povos indígenas antes da promulgação da Constituição de 1988, amplamente registrados em documentos como o Relatório Figueiredo e a Comissão Nacional da Verdade”, diz numa nota.
“Seguimos na luta e cobramos para que [o Presidente] Lula vete esse projecto e concretize seu compromisso com os povos indígenas”, afirmou Kleber Karipuna, apelando ao veto de Lula da Silva.
É reconhecido que a base alargada em que se apoia o Governo de Lula da Silva pode ser um problema. “Infelizmente, o Governo cede ministérios e dinheiro de emendas parlamentares, mas fica sem votos. Dessa forma, promessas fundamentais feitas pelo presidente Lula, como a continuidade das demarcações e a protecção aos direitos e das Terras Indígenas, são descumpridas”, salientou Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental, citada no comunicado do Observatório do Clima.
Compensações são a próxima batalha
A bancada ruralista no Congresso vai concentrar-se a seguir em aprovar a emenda constitucional PEC 132, que estabelece as compensações para os agricultores que sejam obrigados a deixar as terras indígenas em que se instalaram até há 70 anos, disse à Reuters o presidente deste grupo, Petro Lupion.
O STF ainda está a avaliar os termos em que essas compensações para os fazendeiros expulsos poderão ser atribuídas. Mas pode ser algo bastante dispendioso para o Governo, que tem recursos limitados e está a lutar para diminuir o défice das contas públicas.
Pode o Congresso legislar sobre algo que o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional? O que prevalece?
“O poder legislativo possui autonomia para legislar e tomar decisões sobre os temas em geral, aprovar leis que modifiquem outras leis, que criem e excluam direitos e deveres – desde que, é claro, não firam a Constituição Federal”, disse ao site Brasil de Fato a jurista Tânia Oliveira, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
“O poder judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, exerce o controlo de constitucionalidade das leis. Significa que uma lei que fere a Constituição Federal já nasce inconstitucional. É o caso, por exemplo, do marco temporal”, explicou. Depois de o STF ter decidido que o marco temporal é inconstitucional, afirmou Tânia Oliveira, “o Congresso Nacional não pode posteriormente aprovar uma lei determinando que ele seja aplicado”. Isso não quer dizer que não haja um braço-de-ferro.