Arassari Pataxó: para o ouro e o diamante “chegarem aqui, muitos irmãos morrem lá”
Cacique esteve na Baixa da Banheira para dar uma palestra sobre os pataxós e as ameaças aos povos indígenas do Brasil, como o marco temporal: “Se for aprovado, está anunciado um grande genocídio.”
De cocar posto, cara e corpo pintados com urucum e jenipapo, uma armadura de protecção – chamada massacá –, um cinto e uma bolsa, Arassari Pataxó apresenta-se completo na Baixa da Banheira, na Moita. Vindo do Brasil, o cacique e líder indígena de 35 anos esteve em Portugal a convite da loja Okê Caboclo para dar ali uma palestra sobre os pataxós, a medicina do seu povo, a importância dos indígenas e da Amazónia para o mundo.
Licenciado em Direito, artista, modelo fotográfico e palestrante no Brasil e fora do país, Arassari aproveita todas as oportunidades para conscientizar os seus interlocutores sobre a importância da defesa dos povos originários, protectores da floresta, que continuam a ser alvo de inúmeras violências no Brasil. Com o financiamento que obtém, usa-o para a construção da sua aldeia no Sul do estado da Bahia, a plantação de 60.000 árvores como o jatobá, a amescla, os ipês de várias cores, o ingá, o paraju, numa área de 16 hectares e a recuperação de dois rios, num trabalho de restauro da natureza. “Só ela é superior”, diz ao PÚBLICO, durante uma conversa em que não larga o sorriso, nem a alegria.
Esse cocar é feito de penas de que ave?
Penas de arara. No cocar está a estrutura do nosso povo. As vossas leis estão no papel. A nossa está na consciência e nos corações. Temos princípios. Todas essas penas são do mesmo tamanho, significam o princípio da horizontalidade, onde não há ninguém superior ao outro. Mesmo sendo cacique, não sou superior aos membros da aldeia, é apenas uma função diferente. O facto de as penas estarem uma ao lado da outra significa o princípio da união, que o nosso povo deve viver unido, um ajudando o outro, como parentes. Há só uma maior, a da frente, que representa a mãe natureza. Só ela é superior, dá o ar, a água, o alimento, tudo.
Como se tornou cacique?
Primeiro, tem de se estar preparado. Acreditamos que nascemos com essa missão e no decorrer da nossa vida a comunidade vê o seu comportamento como guerreiro, na defesa do seu povo, ao usar inteligência. Esse guerreiro é escolhido pelo povo para ser o cacique. Você tem de aprender medicina, algumas lutas e ter uma boa linguagem tanto com o homem branco, quanto com o seu povo.
Qual a função do cacique?
É como se fosse um líder administrativo. Ele cuida da parte social, da organização interna da aldeia. Também é um porta-voz do povo. Já o pajé é o chefe espiritual.
Tirou o curso de Direito. Porquê?
Para defender o meu povo com mais autonomia. Todos os nossos direitos sempre foram violados no Brasil e havia sempre alguém que falava por nós, a [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] Funai, um pesquisador, um antropólogo. Fomos considerados grandes mudos da História. Vimos lutando para buscar autonomia de falarmos por nós. Com o Direito tinha mais autonomia de dizer o que estava certo, o que estava errado, e lutar juridicamente. Quando terminei a Faculdade de Direito, recebi o convite do meu povo para administrar uma aldeia. Aceitei como missão. Estou reconstruindo uma aldeia, plantando 60.000 árvores e salvando dois rios que estavam entrando em extinção.
Como se chama a aldeia e onde fica?
Tatuí. Fica dentro do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal. Em 1500, quando [Pedro Álvares] Cabral chegou no Brasil, era Páscoa e avistou esse monte muito alto. Ele disse "terra à vista" e, por ser Páscoa, denominou-o Monte Pascoal. Nós, pataxó, estamos lá desde antes de Cabral chegar.
Que nome dão ao lugar?
Pindorama.
O que quer dizer?
Terra de palmeiras verdes.
Quais são as ameaças que os pataxós sofrem?
A invasão dos territórios. Sabe-se que a maior riqueza do mundo está concentrada nas terras indígenas: o diamante, o ouro, o nióbio, o lítio, a madeira, o solo, a água potável. Como o homem branco destruiu o que não estava dentro das terras indígenas, agora estão adentrando nelas para roubar madeira e minérios. Há muito interesse, até mesmo de políticos, de empresários.
Uma ameaça maior é a criação da lei do marco temporal. Estamos num embate muito grande. Se ele for aprovado, está anunciado um grande genocídio. O marco temporal serve para dizer: "Vocês só vão ter direito a demarcar os seus territórios, se tiverem estado naquela aldeia em 1988", na promulgação da Constituição do Brasil. Naquela época, a gente estava saindo de uma ditadura e não tinha nenhum direito garantido. Tínhamos a lei de 1973, que tratava o índio como silvícola, como relativamente incapaz, como se fosse um pré-adolescente.
Se essa lei for aprovada, vai beneficiar o invasor, o agro-negócio, os fazendeiros, os mineradores. Isso é muito preocupante porque vai impactar negativamente todo o planeta. A destruição das árvores e o uso desenfreado do solo para extracção de minério afectam o clima e podem causar danos irreversíveis na humanidade.
A vossa terra está demarcada?
Sim, mas tem muitos invasores. Estamos enfrentando um processo na justiça há 30 anos, que é o julgamento de um território em volta do parque. Os fazendeiros organizaram-se e expulsaram os indígenas do território. Há 374 fazendas dentro das terras indígenas do meu povo e estamos com esse processo para libertar o território.
Como estão organizados para lutar contra o marco temporal?
A APIB [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil] é a organização em que todas as etnias estão englobadas para discutir questões emergenciais. Estamos buscando apoio da sociedade civil, de alguns parceiros ligados à questão de defesa dos direitos dos povos indígenas, de instituições e também de alguns políticos. Infelizmente, há muito deputados que estão totalmente contrários a essa questão porque estão ligados aos ruralistas.
Que diferença faz ter no Governo uma ministra indígena, Sônia Guajajara [ministra dos Povos Indígenas]?
Dá muita esperança. Nunca na História do nosso país houve uma ministra indígena. Acreditamos que ela é uma semente, que está representando os povos indígenas do Brasil. Estamos sempre apoiando todas as decisões. Mas é muito pouco. Temos de lutar de uma forma pedagógica. Acreditamos na formação de consciência, por isso é que saí do meu país e estou aqui.
O que é essa consciência?
A comunidade internacional acaba, na maioria das vezes, comprando produtos brasileiros que nem sabe a origem. A formação de consciência é isso: que carne está consumindo? Será que é a carne de uma empresa que está destruindo a Amazónia, matando as florestas para criar o boi, a soja, o milho, o couro? A Europa é um dos maiores compradores de ouro e de couro do Brasil. O ouro, os diamantes, é bom saber de onde vêm, ou, de contrário, não compre. Porque talvez esteja incentivando esse crescimento de ouro sangrento, essa carne que mata nossos corpos. Todos esses produtos que vêm do Brasil, para chegarem aqui, muitos dos meus irmãos morrem lá.
Do que veio falar hoje?
Da importância dos direitos dos povos originários e da valorização desses povos para o mundo. A gente vai começar falando sobre a questão do clima, a questão ambiental e depois vou falar sobre a cura. A cura com ervas medicinais, com a questão espiritual. Todos os nossos conhecimentos são ligados à mãe natureza. Queremos trazer essa consciência para o mundo saber que a cura vem da natureza.
Quais são os riscos em relação à Amazónia?
O nosso ancião fala: “Tudo, o nosso grande criador fez para nos dar a vida." Tem a Antárctida, lá é o gelo para resfriar a Terra. A floresta amazónica, ela veio para dar o ar. Só que o homem branco, que não tem consciência, acaba querendo destruir tudo isso para criar o boi, plantar soja e vender as madeiras. No Brasil, há uma campanha muito grande que é o agro-negócio, que financia as grandes empresas e até mesmo as redes de televisões. Nós, povos indígenas, não temos dinheiro para financiar nada. Só que o dinheiro não compra a vida, não compra o ar, não compra a terra, por isso temos de ter uma consciência maior. Se não lutarmos pela Amazónia, vamos ter a população com doenças, a catástrofe.
No Sul da Bahia, sentem os efeitos das alterações climáticas?
Sim. Houve um miniciclone no ano passado na minha aldeia que destruiu quase 80% das casas. Choveu em lugares isolados, mas não choveu espaçadamente como antigamente, que chovia um grande volume mas era espaçadamente. No início desse ano, na aldeia Coroa Vermelha, perto de Porto Seguro, choveu de uma forma tão bruta, mas só numa localização, assim como aconteceu em São Paulo, no litoral, que choveu só numa região matando quase 200 pessoas. Na minha aldeia não chegou a matar pessoas, mas tivemos muitos prejuízos.
Pode falar um pouco sobre a história dos pataxós?
A mitologia diz que o nosso povo vivia nas profundezas das águas. Por conta do ego, do conflito, a mãe natureza revolta-se e cria ondas para expelir aqueles indivíduos. Esses indivíduos começaram a cavar um buraco e emergiram da Terra. Eles foram saindo e ficando ali na Terra. Quando o último saiu, olharam aquele buraco e escutaram a água batendo na pedra, fazendo um som: “Pá-tá-xó, pá-tá-xó.” Eles denominaram-se como pataxó, que significa "som da água do mar". A minha avó contou essa história, levou-me a esse lugar. Quando cheguei lá, é um buraco muito grande, que está aberto até hoje e você olha para baixo e escuta esse som batendo. Chega a arrepiar, dá uma emoção danada.
Continuam a ter uma relação com o mar?
Toda a nossa vida é ligada à água. No encontro das águas, em Outubro, é onde acontece o ritual de casamento, de baptizado das crianças. Num lugar da floresta, pegamos na argila e passamos no corpo das crianças. É um ritual de purificação. O barro começa a secar e a puxar a pele. Acreditamos que a argila que sai do fundo do mar suga as impurezas para nos preparar para viver nesse mundo. Depois, vamos para o rio banhar na água, que é o agradecimento à mãe natureza.
Qual a importância de vir dar uma palestra à periferia de Lisboa?
Buscamos levar as nossas vozes para o mundo inteiro. Na sua grande maioria, quem quer escutar-nos são as pessoas que passam por situações parecidas, por negação de direito, invisibilidade, opressões. Acredito que as minorias têm de se falar, de alinhar diálogos, demandas e dizer que estamos juntos de braços dados para construir um mundo melhor.
Ter tirado o curso de Direito ajuda na luta indígena?
O Direito tem a sua perspectiva muito ligada ao sistema capitalista. Quem tem dinheiro está comprando as maiores defesas e quem não tem está sempre tendo o seu direito violado. Ingenuamente, quis fazer Direito para defender meu direito, resolver os problemas dos povos indígenas. Vi que ser advogado não vai resolver o problema de muitas pessoas. Se você não tiver articulação política, dinheiro, não for amigo do juiz, acaba não tendo sucesso. Então, entro num ramo do Direito que se chama mediação e conciliação de conflitos, em que você soluciona as relações conflituosas no diálogo, na conversa.
Quando há um conflito dentro do território indígena do meu povo, sempre perdemos porque é o ruralista que tem muito dinheiro para pagar as maiores defesas. Aí, a gente vai dialogando ali para o conflito não sair de um controlo. Ainda acontece muita violência. Perdemos oito lideranças pataxós no ano passado. Os pistoleiros contratados pelos fazendeiros acabam adentrando na aldeia, invadem, atiram. Na maioria das vezes, a justiça brasileira sabe, mas o cara é amigo do juiz e do desembargador. No campo, no Brasil, 80% de todo o conflito criminal não chega ao desfecho final.
Que impacto teve a perda dessas oito lideranças?
Foi irreparável. São nossos primos, não vão ter a vida de volta. Nós brotamos daquele solo e ficamos inseguros de viver onde nascemos, porque de uma hora para a outra alguém gosta daquela região e fala: "Vamos ter de matar esses indígenas, vamos ficar com esse território." É uma sensação de muita insegurança e impotência. Temos um judiciário que, na sua grande maioria, homologa esse tipo de violência no campo. Tivemos leis que autorizavam os fazendeiros a andar armados nos territórios. São leis armamentistas que acabam favorecendo quem sempre nos matou.
Após quatro anos de bolsonarismo, vê diferenças com o novo Governo de Lula?
Dá um pouco de esperança, porque há diferenças muito grandes. [Jair] Bolsonaro é inimigo dos povos indígenas, do meio ambiente, das mulheres, da questão LGBTQIA+, das religiões. Lula é mais socialista, dialoga mais com as minorias. Quando Bolsonaro sai, deixa 20.000 garimpeiros nas terras indígenas [ianomâmis]. Quando Lula empossa, passados dois meses, já a Sônia faz um pedido para a força nacional adentrar nas aldeias e expulsar os garimpeiros e descobre-se que morreram 570 crianças no Governo de Bolsonaro. Quem matou todas as crianças? Foram os garimpeiros. No momento que adentravam na aldeia, usavam mercúrio, havia estupro e, na maioria das vezes, o uso letal de arma de fogo. Por isso falamos de genocídio. Todas as autoridades do Governo de Bolsonaro sabiam e fingiam que não sabiam.
Produz arte, é modelo fotográfico. Que importância têm essas actividades?
São muito importantes não só para mim, mas para o meu povo. No momento em que o coleccionador compra uma arte do meu povo, ou minha, está comprando uma verdade, um manifesto, ele está conhecendo a verdade de um povo. A moda é a actividade mais elitista e que polui mais o ecossistema. É um mundo que é excludente. Mas estou levando a questão cultural do meu povo, das lutas e da exclusão. Estar ali é furar a bolha.