Entre a bruxaria e a demência nos “campos para bruxas” do Gana
Em Gambaga, existe um campo que alberga cem pessoas acusadas de bruxaria. Em The Big Forget, Lee-Ann Olwage explora o impacto da demência no contexto sociocultural dos países subsarianos
No norte do Gana, há mais de trezentas mulheres acusadas de bruxaria que vivem em cinco campos de acolhimento comummente denominados de “campos para bruxas”. A sua permanência forçada no interior destes recintos, causada por um fenómeno social ancestral que provoca a sua exclusão das suas aldeias pelas próprias comunidades, pode durar décadas ou mesmo o resto da vida. E tudo começa com uma simples e infundada acusação de bruxaria.
A fotógrafa sul-africana Lee-Ann Olwage documentou, num projecto fotográfico que se mantém em desenvolvimento intitulado The Big Forget – que teve uma imagem distinguida, em 2023, pelo concurso World Press Photo – a vida de mulheres idosas afectadas por demência no continente africano. A fotografia galardoada, que pertence ao mais recente capítulo do projecto desenvolvido em 2022 no Gana, diz respeito à realidade experienciada por Sugri Zenabu, uma das muitas mulheres que residem num “campo para bruxas”, que existe há cerca de cem anos em Gambaga. Os sintomas de demência da idosa retratada foram confundidos, no seio da sua comunidade, com manifestações do oculto, o que levou à sua exclusão e internamento compulsivo.
Este não é um caso isolado, conta ao P3 a fotógrafa que dedicou os últimos anos à compreensão do papel da superstição e das construções culturais africanas na interpretação da demência e das suas implicações sobre as vidas de quem padece da doença. “Ver alguém que perde as suas inibições, caminha nu pela rua à noite ou fala com os pais que estão mortos há anos como se pudesse vê-los, pode provocar medo. É perfeitamente compreensível”, enfatiza a fotógrafa, a partir da África do Sul, onde reside. “É nesse momento que a espiritualidade e a superstição, que estão na base de muitas crenças religiosas em África, são invocadas para explicar o inexplicável.”
Sintomas como discurso incoerente, alterações de humor, confusão, agressividade, perda de memória, podem ser interpretados, em países da região subsariana, como indícios de bruxaria. “As mulheres são acusadas mais frequentemente [de bruxaria] do que os homens”, refere Olwage na sinopse do projecto. “No Gana, elas podem fugir ou podem ser enviadas para os ‘campos para bruxas’. Os campos são controversos. Se, por um lado, são um refúgio que as protege de violência, por outro, quem neles vive está sujeito a exploração por parte dos líderes dos campos, que ganham dinheiro com os julgamentos e rituais associados à bruxaria.”
A questão é muito complexa e ultrapassa a falta de acesso a meios de diagnóstico associados saúde mental, algo muito comum nessa região do mundo. “Em muitas comunidades, em África, não existe uma palavra para demência ou doença de Alzheimer. Quando as pessoas descrevem os sintomas de demência, utilizam palavras com conotações muito negativas, como ‘louco’ ou ‘doido’. Não existe uma palavra positiva. E se não existe sequer uma palavra para a doença, como é que se começa sequer a abordar a questão?” Há também questões relacionadas com a pobreza e com a escassez de especialistas em saúde mental, o que dificulta o diagnóstico. “Há países inteiros que têm apenas um ou dois neurologistas”, evidencia Olwage.
“Também se tornou óbvio, ao falar com médicos e enfermeiros, que esses partilham das mesmas crenças [difundidas nas comunidades]. Ou seja, também acreditam que a doença tem uma causa física e espiritual.” Assim, é comum que os pacientes combinem a medicina tradicional, recorrendo a tratamentos sem base científica, com a medicina dita ocidentalizada. Olwage é da opinião que as duas devem associar-se neste contexto. “Acredito que a chave está no encontro de todos na busca por uma solução”, refere. “É importante que não existam vilões ou heróis.” Considera fundamental, no retrato que elaborou, a neutralidade e o respeito pela herança cultural das sociedades locais.
A realidade dos campos para bruxas do Gana
Nos campos para bruxas do Gana, ao qual Olwage dedica o segundo capítulo do projecto que teve início na Namíbia, em 2020, residem cerca de 100 mulheres, homens e crianças – os dois últimos estão em minoria. Os motivos que conduzem ao internamento destes indivíduos estão sempre associados a acusações infundadas que têm por base sentimentos de temor ou vingança. O termo “caça às bruxas”, que tem raízes históricas, alude precisamente para a aleatoriedade das imputações. Relatos de suspeitas que têm origem em sonhos não são incomuns. Mortes ou acidentes inesperados podem também levantar suspeitas de bruxaria sobre qualquer indivíduo.
Escapar às acusações, no entanto, depende inteiramente da sorte do acusado. No Gana, o ritual judicial que determina se um indivíduo é ou não culpado de bruxaria consiste na decapitação de uma galinha, que o próprio deve entregar a um líder espiritual. Se, no momento da morte, o animal tiver as patas em contacto com o solo, a pessoa é considerada culpada; se, ao contrário, tiver as patas viradas para o céu, o acusado é ilibado.
Lee-Ann Olwage não foca o seu projecto no retrato geral do fenómeno dos campos para bruxas. Aliás, The Big Forget centra-se, exclusivamente, nas questões associadas à demência no contexto dos países subsarianos, nomeadamente no impacto que tem nas sociedades aonde se desloca. O primeiro capítulo, que elaborou na Namíbia, difere grandemente do segundo e não alude ao papel da bruxaria no fenómeno da demência.
A fotógrafa sul-africana acredita que é necessária uma maior intervenção das organizações de saúde mundiais no sentido de apoiar e informar as comunidades sobre o que consiste e como lidar com a demência. É necessária a criação de estruturas de apoio locais e garantir que a informação chega até todos. Esse apoio vai muito para além da procura genérica de uma cura, investida que tem logrado alguns avanços nos últimos anos. “Podemos financiar a busca para uma cura, mas é também necessário intervir do ponto de vista cultural, de forma a fomentar um maior conhecimento do fenómeno por parte das comunidades”, argumenta. “Porque mesmo que uma cura seja descoberta, quanto tempo irá tardar até chegar a estes países?”
O projecto mantém-se em desenvolvimento e Olwage espera dar-lhe visibilidade em África através da criação de exposições fotográficas, onde servirão como ferramenta de consciencialização.