Disforia pós-sexo: sentir na pele as austeridades sociais

Porque temos direito à masturbação e ao sexo, a nossa sexualidade deve ser também uma identidade que propicie uma cidadania activa, em prol do reconhecimento e do apoio de todas as formas de estar.

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Megafone P3: Ron Lach Ron Lach
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Caro leitor: já alguma vez sentiu um descontentamento profundo logo após o ápice numa masturbação ou num acto sexual com um parceiro? Um desânimo que chega a colocar em causa o valor da nossa performance e o significado da nossa própria existência?

Pois bem, eu já. Aliás, se quiser ser franco comigo mesmo, e enquanto pessoa virgem, tenho de admitir que o sinto a cada vez que me onanizo. Uma prática que deveria representar estimulação reconfortante e prazer – e que o é até o alcance do clímax – transforma-se num questionamento do mundo, das suas (in)seguranças, em que a euforia dá lugar ao desapontamento e à irritação. São verdadeiras emoções bipolares, que em poucos minutos expõem, a partir de cada um de nós, dois seres humanos muito distintos com cosmovisões bastantes díspares.

Designada de disforia pós-sexo, ou também tristeza pós-sexo ou depressão pós-sexo, esta condição ou este acontecimento caracteriza-se por um abatimento humoral que, ao contrário da tranquilidade habitual sentida no final de um exercício activo da sua sexualidade, promove a autodepreciação do indivíduo.

Este – seja homem ou mulher, porque investigações já relataram a expressão dual de género na vivência deste fenómeno – é acometido por uma sensação de vergonha de si mesmo, como uma culpa igual àquela de quando comemos comida fast food e depois nos arrependemos pensando no seu efeito para as nossas tentativas de alimentação saudável. Com tantos sentimentos negativos à mistura, a disforia pós-sexo pode desembocar mesmo em ataques de choro e crises depressivas.

Nunca passei por estes momentos de maior tensão, mas a sensação de vazio está sempre presente. E ela pode provir de razões que não são somente biológicas ou psicológicas, porém igualmente sociais e explicadas sociologicamente. Para muitas pessoas, esta disforia tem origem devido à educação sexual no seio familiar, que pode ser caracterizada como desigual, moralista ou opressora, designadamente para pessoas LGBTQ+.

O sexo começa, então, por ser um processo de desvio perante os padrões rígidos transmitidos na socialização primária, mas termina na incorporação involuntária desses mesmos padrões e numa culpabilidade associada, como se a masturbação ou a relação sexual fossem pecados para Deus e, consequentemente, injúrias para a família.

Não raras as vezes a esta dimensão de desigualdade familiar está associada as falhas autopercebidas na performance sexual e do corpo – a pessoa, admitindo que está a transgredir aquilo que lhe foi ensinado, cria a ideia de que não consegue sequer atribuir a essa transgressão uma eficácia para satisfazer o outro.

Disto resulta a introdução das injustiças sociais na nossa própria estrutura física, na matéria com que caminhamos e nos expressamos diariamente, condicionando a nossa agência pelo mal-estar psicológico que sentimos por uma acção que não deveria, nem poderia, ser diminuída face às limitações de abertura ao mundo de terceiros.

Como afirma o sociólogo João Teixeira Lopes, num artigo no Gerador, "A moral dos outros é como uma lâmina afiada apontada à tua garganta. Nunca se engana, não conhece a dúvida, sabe sempre como prosseguir. (…) Impede-te de te suicidares, de fazeres um aborto, de pedires eutanásia, de seres sodomita ou de desafiares a existência dos deuses. O teu corpo não te pertence, é um dom que não podes usar, evitarás 'a exuberância das carnes'". Se a disforia pós-sexo pode acontecer por força das nossas actividades psíquicas, não é menos do que um fenómeno que traz ao de cima sentidos culturais e civilizacionais e activa desigualdades e disposições internas de embaraço e de demérito.

Revela-se impreterível analisar este acontecimento sob um ponto de vista que transcenda o médico ou sanitário, convocando outras áreas disciplinares para o seu entendimento. Porque temos direito à masturbação e ao sexo, a nossa sexualidade deve ser também uma identidade que propicie uma cidadania activa, em prol do reconhecimento e do apoio de todas as formas de estar na sociedade, onde se inclui a fruição equilibrada dos nossos desejos mais carnais. Combatamos o vazio emocional com o preenchimento de condições de vida e com o exercício da liberdade sexual.

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