Estátuas e espaço público (novamente)

É totalmente inaceitável que um presidente de Câmara pense que pode retirar estátuas do espaço público sem ouvir ninguém, nomeadamente comissão municipal de arte pública ou património cultural.

Ouça este artigo
00:00
03:54

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Merecem toda a atenção as notícias do ziguezague entre remoção e afinal manutenção (pelo menos por agora…) da estátua de Camilo Castelo Branco com mulher nua (geralmente identificada como Ana Plácido), do escultor Francisco Simões, inaugurada em 2012 no Porto.

Surgiram petições em sentido contrário. A que exige a remoção levou o presidente da Câmara, num primeiro momento, a decidir tirar a estátua do espaço público. Alguns dos 37 peticionários invocam questões de moral, bons costumes e bom gosto. Outros referem-se ao diferente tratamento entre a presumível Ana (nua) e Camilo (vestido), entendendo representar ele um machismo descarado e até ofensivo da memória da feminista ou em todo o caso da mulher livre e corajosa que foi Ana Plácido. Já os peticionários que querem manter a estátua no Largo Amor de Perdição denunciam a censura e enfatizam a natureza polissémica, quase sacrossanta, da arte. Curiosamente nenhum dos campos realiza verdadeiramente apreciação da obra em si mesma, da sua qualidade intrínseca, que talvez fosse pertinente analisar.

Há aqui muito para reflectir.

Primeiro: pode um presidente de Câmara, de motu próprio, sem ouvir ninguém, decidir remover uma estátua do espaço público?

Segundo: podem questões de moral e bom gosto ser suficientes para o efeito?

Terceiro: e pode tal justificar-se pelos motivos sexistas invocados, mesmo que o autor da obra esclareça e desminta tais leituras?

Quarto: em geral, podem estátuas ser removidas do espaço público por ofensas a cada presente? E, se sim, através de que procedimentos?

Depois dos combates anti-iconoclastas que tenho travado, as minhas respostas surpreenderão talvez. Mas elas aqui vão: não quanto às duas primeiras perguntas; sim quanto às duas últimas.

Clarificando:

1. É para mim totalmente inaceitável que um presidente de Câmara pense que pode retirar estátuas do espaço público sem ouvir ninguém, nomeadamente comissão municipal de arte pública ou património cultural, de composição democrática, que deveria absolutamente existir e emitir parecer. Trata-se uma pulsão autocrática, que nenhum recuo ulterior permite disfarçar.

2. Moral, bom gosto e bons costumes são categorias de espírito muito difusas: nunca deveriam constituir em si mesmas fundamento para actos censórios; se assim fosse também a estátua do Eça em Lisboa, com a Verdade sob manto diáfano de fantasia (uma peça escultórica muito melhor do que a do Porto), já há muito teria sido retirada, como aliás pretenderam em seu tempo espíritos mais puritanos.

3. Mas, no caso concreto do Porto, por muito que o autor o negue, é razoável admitir que muitos dos passantes, e por maioria de causas aqueles que conhecem a estória do amor interdito e de perdição entre Ana e Camilo, tenham a leitura machista e de ofensa à própria verdade histórica – e eu penso que estas poderão ser razões suficientes para retirar a estátua, desde que cumpridos todos os procedimentos democráticos.

4. Em geral, não me ofende que cada presente possa retirar da vista pública em jardins, ruas ou praças estátuas do passado. Nunca destruí-las, entendamo-nos. Apenas removê-las para locais que entenda mais adequados e desde logo para museus. Mas deve fazê-lo dentro de procedimentos democráticos, com a maior participação e discussão públicas.

Aqui chegado, recordo o caso da estátua do Padre António Vieira com crianças índias, em Lisboa, no Largo Trindade Coelho. Também a considero de mau gosto. Mas isso sou eu. Pior: aceito que provoque em muitos sentimentos de repulsa pelo paternalismo que evidencia e que pode ter leitura colonial ou racista mais ampla. Sendo assim, não me incomodaria vê-la removida para museu, o Museu de São Roque, por exemplo, acompanhada de material informativo que explicasse a cena, no quadro da vida e das ideias de Vieira, e narrasse a polémica havida. Mas tudo discutido amplamente e validado adequadamente, pelos procedimentos próprios. Agora pichagens, defesa da sua fundição e "activismo descolonial" asnático, isso não.

Sugerir correcção
Ler 31 comentários