Governos desvalorizam argumentos de jovens que levaram inacção climática a tribunal

Seis jovens portugueses estão a processar 32 países por falta de acção climática, um caso inédito no TEDH. Defesa dos países desvaloriza impactos alegados pelos jovens.

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O processo começou há três anos e o TEDH ouvirá os argumentos deste caso a 27 de Setembro TOMMY/GETTYIMAGES
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“Meras suposições ou hipóteses vazias.” É assim que o Estado português classifica algumas das questões levantadas por seis jovens portugueses no âmbito do processo levado ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), em que acusam Portugal e outros 31 Estados subscritores da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de não fazerem o suficiente para os proteger das alterações climáticas. O tribunal ouvirá os argumentos deste caso numa audiência a 27 de Setembro.

As respostas dos Estados, a que o PÚBLICO e um conjunto de jornais europeus tiveram acesso exclusivo, chegaram ao TEDH ao longo dos três últimos anos, inicialmente como respostas individuais, entretanto orquestradas em posições conjuntas sobre o caso conhecido como “Duarte Agostinho e Outros v. Portugal e 31”. Trata-se de um caso inédito, tendo em conta que o tribunal, apesar da sua jurisprudência já alargada em matérias ambientais, nunca tomou decisões sobre casos relacionados com o clima de forma mais específica.

Três anos depois do início deste processo, condescendência, trivialização e desvalorização das experiências dos jovens dominam o tom geral das respostas enviadas pelos diferentes Estados. Para a Procuradoria-Geral da República, encarregada de responder por Portugal junto do TEDH, os argumentos dos requerentes não são apresentados “de forma convincente nem com informação factual sólida”.

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Quatro dos jovens que estão a processar os Estados: os irmãos André e Sofia Oliveira com o computador onde estao a Cláudia Agostinho e a Catarina Mota. Fotografia tirada em 2020 Rui Gaudêncio

Os seis jovens portugueses argumentam que vários direitos previstos na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) estão a ser violados pela insuficiente acção dos 32 Estados (já foram 33, mas a Ucrânia foi retirada do processo a pedido dos jovens), sentindo já os efeitos das alterações climáticas no seu quotidiano.

Por um lado, o direito à vida (art.º 2) e ao respeito pela vida privada e familiar (art.º 8), matéria em que o TEDH encontrou violações em vários casos ambientais anteriores. A proibição de tortura e tratamento desumano ou degradante (art.º 3) não estava entre as reivindicações iniciais dos proponentes, tendo sido o próprio tribunal a suscitar a questão e recomendar a sua inclusão no processo. Por fim, a proibição de discriminação (art.º 14) em razão da idade.

E mesmo com a clara importância conferida pelo tribunal, que fez questão de apressar os procedimentos e ouvir este e outros dois casos climáticos em audições na Grande Câmara –​ as primeiras decorreram em Março –, os governos insistem na inadmissibilidade do caso: não foram esgotadas as vias nacionais, os requerentes não preenchem o estatuto de vítima, não há jurisdição e o caso está “manifestamente mal fundamentado”. (Uma série de contributos submetidos por outros intervenientes, incluindo representantes da ONU e do Conselho da Europa, traz argumentos que contrariam estas alegações.)

Ataques

Nas observações conjuntas agora conhecidas através dos documentos cedidos pela Global Legal Action Network (GLAN), os países alegam ainda que “os requerentes não residem numa área reconhecida como estando em particular risco de calor devido aos impactos das alterações climáticas”. Apesar da evidência científica que mostra que Portugal será, de facto, particularmente afectado – a começar pelo relatório de 2018 do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), onde o Mediterrâneo era identificado como um hot spot das alterações climáticas –, os Estados (em particular o português) focam-se maioritariamente em desvalorizar este argumento, alegando que os concelhos onde os jovens residem não são, especificamente, considerados de maior risco.

Quatro destes jovens residem em Leiria, distrito afectado pelos grandes incêndios de 2017 – acontecimento, aliás, que espoletou esta acção junto do TEDH. Ainda assim, uma das respostas do Governo português refere que “não se pode dizer que estejam em risco acrescido”.

Por fim, entre os argumentos dos Estados, há alguns mais inusitados, como o da Hungria, que escolheu culpar os jovens: “Os requerentes não demonstraram que eles, pessoalmente, não contribuíram para este fenómeno global (pelo contrário, o requerimento por si só já gerou uma pegada carbónica considerável). Desta forma, são parcialmente responsáveis pelos efeitos ambientais que alegadamente interferem com os seus direitos sob a Convenção.”

Desvalorização

A discriminação em função da idade é outra das questões contestadas pelos Estados. Um dos argumentos recorrentes é a trivialização dos impactos das alterações climáticas alegados pelos jovens, na medida em que “não são questões específicas dos requerentes”. Agravamento da asma, dificuldades a dormir, perda de qualidade de vida, ansiedade – todas estas “preocupações e medos” são desvalorizados por serem “não substanciados” individualmente.

“Não foi provado que os requerentes sofrem mais do que a população em geral em virtude da sua idade”, lê-se na argumentação conjunta dos Estados. “Os requerentes não são, por conseguinte, um grupo sujeito a riscos potenciais de uma fonte em comum que os afecta especificamente.”

Na posição individual do país, aliás, Portugal é igualmente mordaz: “Os receios que os requerentes referem relativamente ao eventual agravamento de doenças respiratórias ou alergias de que alegam sofrer, ou mesmo o receio dos dois últimos requerentes de tempestades de Inverno, uma vez que vivem perto do mar, são meras suposições ou hipóteses vazias”, lê-se na resposta. “Nem os requerentes nem as provas apresentadas demonstram, de forma convincente e através de informações factuais sólidas, que os requerentes são susceptíveis de sofrer danos a nível pessoal.”

Mais adiante, afirma-se ainda que “as alegações dos requerentes consistem apenas em receios futuros, constituindo meras suposições ou probabilidades genéricas, sem qualquer demonstração da existência de uma probabilidade séria de que estes venham a ocorrer aos requerentes a nível individual”.

A última resposta de Portugal, em Março deste ano, vem munida de um pequeno relatório da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e outro da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) no ensejo de confirmar que o Estado está a fazer tudo ao seu alcance tanto em matéria de mitigação das emissões como em matéria de adaptação do território, nomeadamente em termos de prevenção e gestão de fogos florestais.

Acordo de Paris

Por fim, um dos argumentos centrais dos Estados é a falta de jurisdição para a tomada de uma decisão, em particular tendo em conta que grande parte dos argumentos tem por base os compromissos assumidos no Acordo de Paris, assinado em 2015 no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC).

“Os requerentes estão a pedir ao tribunal para assumir um papel na aplicação do Acordo de Paris, algo que não está previsto no referido acordo nem na Convenção”, sublinham os Estados. “Além disso, e fundamentalmente, os requerentes estão a tentar transformar o conceito de ‘maior ambição possível’ numa obrigação objectiva”, algo que os Estados refutam liminarmente.

Afirma-se ainda que os requerentes “consideram que deveria haver jurisdição para que possa haver responsabilidade” e alertam para que, caso o TEDH dê razão a estes jovens e obrigue os 32 Estados a apressar a sua acção climática, abre-se um precedente que consideram perigoso.

Apesar da pertinência destes argumentos – se bem que, uma vez mais, os contributos de outras partes traga várias interpretações que trazem nuances a esta questão –, o formalismo evidente nas respostas dos Estados traz também uma luz sobre a visão dos mesmos em relação aos compromissos do Acordo de Paris, numa mensagem dissonante dos discursos políticos e promessas de conter o aquecimento global.

Nas suas observações, vários países questionam a validade dos argumentos focados no “alegado” limite de 1,5ºC previsto no Acordo de Paris, recordando (com razão) que é uma meta não vinculativa.

O Reino Unido, por exemplo, questiona que haja um “consenso sobre 1,5ºC” vertido no Acordo de Paris. Já a Bulgária descreve a obrigação de limitar o aquecimento global a 1,5ºC como uma “ficção”. Portugal assume uma posição mais focada na evolução dos esforços de mitigação de emissões ao longo dos últimos anos, sublinhando que, tanto a nível nacional como no contexto da UE, “tem defendido consistentemente posições com o objectivo de promover uma maior ambição e acção” climática global.

Ainda assim, as observações de Portugal concluem, com base na argumentação legal, que “o Governo português insiste em que este caso deve ser considerado inadmissível e deve ser rejeitado”.