Aljezur: esta área protegida privada é uma lição de resiliência

Na Área Protegida Privada Vale das Amoreiras, em Aljezur, descobrimos uma floresta densa de espécies raras e histórias de fogo e resiliência.

#MVR Matilde Fieschi -Area protegida Vale das Amoreiras.Raban von Mentzingen e Mario Encarnacao- 30 de Agosto de 2023.
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Vale das Amoreiras MATILDE FIESCHI
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É como atravessar uma passagem secreta. Da estrada, mal se vê o caminho que agora percorremos, propositadamente discreto, com a entrada escondida atrás de uma árvore larga. Apenas a placa de madeira denuncia ser aqui o início do Trilho da Raposa, sem pompa nem explicações. Atravessamos a primeira linha de vegetação, para lá da tal árvore, e só então encontramos a estreita vereda que segue por entre o carvalhal até à primeira escadaria, feita de degraus talhados no solo e pedaços de eucaliptos.

Num minuto, estamos a estacionar o carro junto a uma estrada rural anónima da Costa Vicentina. No seguinte, mergulhamos no “bosque autóctone de carvalhos e sobreiros”, composto por várias árvores “de grande porte”, algumas centenárias, outras raras em Portugal, que deu origem à classificação do Vale das Amoreiras, no concelho de Aljezur, como Área Protegida Privada, aprovada há dois anos e oficializada em Diário da República em 2022, cerca de 12 anos após a classificação da Faia Brava, até então a única no país.

Caminhamos pelo denso bosque em fila, pé ante pé, de olhos na biodiversidade. Aos primeiros passos, a lição inaugural: como é que conseguimos saber que esta é “uma floresta autóctone consolidada”? Através das “trepadeiras em simbiose com as árvores”, aponta Mário Encarnação, geógrafo e vice-presidente da RWSW Rewilding Sudoeste, associação responsável pela gestão da área protegida. Têm de existir, pelo menos, cinco espécies de trepadeiras, e aqui já foram identificadas a madressilva, a uva-de-cão, a salsaparrilha-bastarda, a ruiva-brava, a silva, e a roseira-brava.

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Raban von Mentzingen e Mário Encarnação MATILDE FIESCHI

Outra característica destas zonas de “floresta do Sudoeste” do país, apenas possíveis “nas vertentes viradas a Norte” dado que “estas plantas não resistem à exposição solar permanente”, é integrarem espécies “que, geneticamente, remontam a tempos muito antigos, anteriores à última era glaciar”, sublinha o geógrafo.

É o caso do carvalho-de-monchique (Quercus canariensis), “um dos mais raros de Portugal continental”, onde está classificado como Criticamente Em Perigo, ocorrendo apenas na serra de Monchique e área adjacente, lê-se na página dedicada à Área Protegida Privada Vale das Amoreiras (APPVA) em natural.pt. “É uma variedade muito difícil de identificar porque há muitos híbridos, mas é caracterizada por ter umas folhas muito grandes, muito largas, e pelinhos na parte de baixo, tipo pêssego”, descreve Mário.

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Ainda havia fogo dentro dos troncos”

Embrenhados no bosque, atentos à gilbardeira, “uma 'imitação' do azevinho” (também encontraremos dois exemplares desta espécie protegida e que, a sul do Tejo, apenas ocorre nesta zona), e aos diferentes carvalhos, sobreiros e medronheiros, pisando a terra coberta de folhas secas, é difícil imaginar que tudo isto já esteve reduzido a cinzas. “Foi terrível. A minha mulher teve de ser resgatada [pelos bombeiros]”, recorda Raban von Mentzingen, dono da propriedade onde está inserida a área protegida.

Estávamos em 1995 e o incêndio florestal que lavrou na região “queimou tudo”. Semanas depois, “ainda havia fogo dentro dos troncos”. Pareciam “fantasmas” em “todas as partes” durante a noite, conta o alemão, agora com 88 anos. Um mês depois, no entanto, notou que começavam a brotar rebentos verdes sobre o negrume da paisagem, “um pequeno ali, outro acolá”. “Admirámo-nos [de ver] que a floresta rejuvenescia [de forma espontânea]. Mais nova, mais pequena, mas existia de novo, igual ao que tinha sido”, recorda. Muitos sobreiros, protegidos pela cortiça, também sobreviveram. “Foi como um milagre.”

Raban tinha chegado a Portugal em 1980 para trabalhar como assessor de imprensa na embaixada da Alemanha em Lisboa, depois de vários anos no Chile, onde conheceu a mulher, natural do país sul-americano. Quando chegou o momento de regressar à Alemanha, no entanto, “chovia muito e ela não gostou”, recorda. Decidiram “procurar alguma coisa aqui em Portugal” e acabaram por encontrar “um anúncio pequeno” sobre esta quinta no interior do concelho de Aljezur. “Gostei imenso.” Ela mudou-se logo em 1985, ele ainda trabalhou em Belgrado e em Berlim. “Em 1998 vim definitivamente para cá e ficámos para sempre”, conta.

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Estamos sentados no primeiro banco do trilho, feito com rodelas de um tronco, já no topo da encosta. “Fizemos isto para controlar a minha senhora, que está sempre do outro lado, no terraço”, graceja Raban. “Daqui vê-se toda a quinta. Do outro lado, é nosso também, até lá acima, aos pinheiros-mansos que plantámos há 20 anos. Com esta seca não têm nada.” À direita, o “vizinho alemão e outro holandês”. A propriedade continua atrás de nós até à cumeada seguinte, onde passa a Via Algarviana.

Uma experiência “pedagógica e sensorial”

Dos 53 hectares, 10,1 são agora área protegida, muito devido a Raban, não só proprietário como “uma pessoa muito interessada” que “há muitos anos” arrasta os amigos “para esta causa”, descreve Mário. E a Udo Schwarzer, botânico, também alemão e residente em Aljezur desde os anos 1980, que fez despertar “a necessidade de proteger de alguma forma [a floresta] e de dar um carácter jurídico oficial a isto”. Foi o botânico a alavancar todo o processo de classificação, uma “burocracia fantástica” de vários anos e “imensos papéis”, descreve Raban, realizado em parceria com a associação.

Já o caminho que percorremos, um percurso circular dividido em sete trilhos que acabam por distinguir os diferentes micro-habitats da área protegida, foi ideia do ucraniano Viktor, trabalhador da quinta que não chegamos a conhecer. Fez “tudo sozinho”, sublinha Raban, desde o abate dos eucaliptos, espécie classificada como exótica e por isso a eliminar, ao corte dos troncos e ramos para criar veredas, corrimões, degraus, bancos, pontes... A limpeza dos caminhos é feita por acções pontuais de voluntariado. Com o fim do Verão, a construção dos trilhos vai continuar, já fora da área oficialmente protegida, mas para onde Raban gostava de vê-la crescer um dia.

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MATILDE FIESCHI
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A ideia dos trilhos, no entanto, não é criar “um percurso de massas”, daí a entrada “discreta”, mas antes uma experiência “pedagógica e sensorial”, diz Mário. “Queremos que as florestas sejam [vistas como a] fonte de conhecimento e de vida que de facto são, e para isso é preciso cativar as pessoas, trazê-las cá, fazê-las gostar disto”, acrescenta. Ao longo dos últimos dois anos, a Rewilding Sudoeste já organizou vários passeios temáticos no Vale das Amoreiras, nomeadamente sobre fungos e cogumelos (no primeiro evento foram identificadas mais de 40 variedades), pirilampos e aves, exemplifica. Nos planos para o futuro está a recuperação de uma ruína junto à estrada, para ali instalar “pequenas exposições, controlar um pouco a entrada, e ter café”, revela Raban.

Atravessar a ribeira sobre um tronco suspenso

Em pouco mais de um quilómetro de caminhada passamos de um carvalhal denso às profundezas húmidas da ribeira à aridez de uma encosta tão soalheira que nela sobrevivem apenas estevas e urzes. “A geografia explica quase tudo”, aponta Mário, lembrando que a orientação do terreno e a exposição solar determinam o tipo de flora que vamos encontrando, muito diversificada e claramente demarcada, apesar do curto percurso.

Passamos por uma antiga horta, pelo mais imponente carvalho (há um trilho aberto “basicamente para o contemplarmos”), e dois sobreiros centenários. No Trilho do Caminho, encontramos vestígios dos passeios da Burros & Artes, projecto da filha de Raban. Colhemos cachos de uvas junto à pequena barragem, “construída em 1936”, e paramos numa das escadarias para observar uma das principais jóias da área protegida e uma das razões para a classificação: ainda que a encontremos já seca, findo o ciclo de vida, o que vemos despontar sobre o degrau é um exemplar da “raríssima” Senecio lopezii, uma “planta endémica da Península Ibérica que, em Portugal, apenas existe no Algarve e que está Em Perigo de extinção, segundo a Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental”, detalha o ICNF na página dedicada à APPVA.

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Apesar das subidas e descidas, das escadas, dos carreiros estreitos, e pontes feitas de troncos, “todo o percurso é muito amigável”, nota Mário, uma vez que foi criado à medida “das necessidades” do proprietário octogenário. De bastões de caminhada a apoiar o corpo já naturalmente menos ágil que outrora, Raban não recusa um pedaço de trilho. Pelo caminho, recorda as vezes em que se perdeu “no mato”, quando ainda não havia estas veredas delineadas. O dia em que foi apanhar cogumelos e ficou de tal forma preso nas silvas que a única salvação “foi gritar por ajuda”. Ou o voo daquela águia, que desceu a pique sobre os arbustos e, de repente, “veio com uma serpente no bico”, tão magistral que fez o casal esquecer a discussão do momento. “Salvou o nosso casamento e agora vamos fazer a boda de diamantes.”

Num Verão tão seco que decidiram não arriscar tirar a cortiça dos sobreiros, com o fogo também de novo por perto, é um espanto encontrar a ribeira ainda com água. Vemo-la brilhar entre os fetos, alguns deles reais, quando atravessamos a mais aventureira das pontes: um tronco exíguo suspenso por cordas que Táxi, o cão salsicha que nos acompanha ao longo de todo o caminho, só arrisca atravessar ao colo (o efeito “radical” para humanos é sobretudo visual, não representando risco). Já pouco se vê, mal se ouve o murmúrio, mas corre um fiozinho “na última ribeira onde ainda existe água em toda esta zona”. “É o nosso milagre.” O segundo do Vale das Amoreiras.

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Herdade Montado do Freixo do Meio, onde foram encontrados vestígios arqueológicos com sete mil anos (aqui reconstituídos) Guillermo Vidal
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