De volta à escola… mas não todos

Num momento em que estamos de regresso às aulas, há 244 milhões de crianças entre os 6 e os 18 anos que não têm esse privilégio que nós damos como adquirido.

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“Jeremiah, quando é que são 5 vezes 10?”, perguntei eu. “17” respondeu ele, como se fosse uma adivinha. Acontece que estamos a falar da dose de Cetamina para anestesiar uma criança de meses de idade. Se se cometerem erros grosseiros com a dose de Cetamina, se for a menos, estamos eventualmente a torturar a criança ao submetê-la a uma cirurgia “sem anestesia”, e se for a mais, podemos matar a criança. Tão simples quanto isto.

Depois de eu revirar os olhos quando ouvi “17”, o Jeremiah continuou a atirar respostas à sorte, “12”, “21”, “19”, não parecia sequer compreender o conceito da multiplicação. Estamos a falar das profundidades do Sudão do Sul, numa terra chamada Akobo, onde o olhar da humanidade quase não chega, mas onde este mais deveria chegar. O Jeremiah tinha o diploma de enfermeiro, e ainda uma formação que o qualifica como enfermeiro de anestesia, no entanto, não sabe fazer contas. Mesmo quando eu escrevi num papel 10 vezes o número 5, para lhe dar uma noção de grandeza, e para lhe tentar fazer ver que multiplicar por 10, é no fundo somar 10 vezes, não cheguei perto de o fazer compreender. O Jeremiah não sabia ao certo que idade é que tinha, mas tinha mais ou menos a minha idade, tinha 6 filhos, e foi criança-soldado durante a guerra civil entre o Sudão do Sul e o Sudão.

Será que ele é burro? Não. Simplesmente não teve educação escolar. Eu, quando tinha 10 anos, andava na escola, fazia vários desportos, e tinha aulas de Inglês. O Jeremiah com 10 anos andava de Kalashnikov ao ombro, preocupado em matar ou morrer, e sem saber muito bem como iria chegar à próxima refeição.

Há uns anos atrás na República Democrática do Congo, uma senhora foi submetida a uma cirurgia abdominal. Uns dias mais tarde, por acaso, passei pela cama da doente na enfermaria, e chamou-se à atenção o facto de apresentar uma evidente sudorese e letargia. Pedi ao enfermeiro que me trouxesse o registo dos sinais vitais da senhora. Estavam normais, com registos consecutivos da frequência cardíaca de 70 batimentos por minuto. Eu coloquei a ponta dos meus dedos no pulso da senhora, e mesmo sem contar, estimei andar na ordem dos 140-150 batimentos por minuto. Interpelei-o por esta gravíssima discrepância, e pedi-lhe que contasse, naquele momento, a frequência cardíaca. Ele olhou para o chão, envergonhado, e confessou-me que não sabia como fazê-lo.

Levamos a senhora de imediato para o bloco operatório, tinha uma obstrução intestinal causada por aderências das ansas intestinais, mas fomos tarde de mais, porque estava em choque, situação em que a frequência cardíaca é o principal sentinela. A senhora morreu nas mãos do cirurgião e nas minhas. Tivéssemos detectado esta complicação umas 12 ou 24 horas antes, e por certo estaria viva.

É gravíssimo ele e outros terem mentido nos sinais vitais, mais grave ainda que não tenham a capacidade de reconhecer sinais de gravidade tão simples de avaliar, e absolutamente chocante que um enfermeiro não saiba fazer algo tão simples, como contar os batimentos cardíacos.

Isto não são casos anedóticos, eu já testemunhei situações semelhantes, de uma ignorância assassina, em muitas das minhas missões.

Num momento em que estamos de regresso às aulas, há 244 milhões de crianças entre os 6 e os 18 anos que não têm esse privilégio que nós damos como adquirido. No dia de hoje, cerca de 10% da população mundial acima dos 15 não tem a primeira classe. E mais outros 10%, apenas completaram a escola primária (dados do Wittgenstein center).

Nos últimos do ranking de escolaridade média, estão oito países africanos: Eritreia, República Centro-Africana, Chade, Sudão, Djibouti, Mali, Niger e Sudão do Sul, por ordem decrescente.

Este é o maior flagelo da humanidade, porque a educação é o oxigénio do desenvolvimento social e económico de um país.

A humanidade é um ser vivo que funciona como um todo, cuja saúde se mede, obrigatoriamente, pela realidade dos mais sofredores. Não há nada de mais importante que possamos fazer pelo planeta, pela humanidade, e por nós próprios, do que lutar contra estas desigualdades cruéis e pôr estas crianças na escola.

O diagnóstico é este, e é triste. As boas notícias é que está ao alcance de qualquer um, reforçar e apoiar o trabalho de uma qualquer organização que lute contra o maior assassino da humanidade: a ignorância.

Deixo aqui uma lista de organizações que fazem esse papel, e bem feito, para que explorem os seus sites, redes sociais e afins, e sigam o vosso coração, para o que o regresso à escola, não seja só para os que nasceram do lado da “sorte” do planeta.

Organizações portuguesas que olham para o mundo com o coração através da educação: Para Onde?, Kêlê , Helpo, Associação missão dimix, Girl Move Academy, OMUNGA Grife Social e Instituto. Leigos para o Desenvolvimento, ATACA- Associação de Tutores e Amigos da Criança Africana, From Kibera with love, Heart Seed.

Seja muito, seja pouco, comecemos por algum lado. O regresso às aulas não pode ser só para alguns.

Foto

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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