O Caso do Cadáver Esquisito 5: “Como a pluma ao vento”, por João Querido Manha
O quinto “episódio” da “novela” de mistério, surreal e com muitas viagens, escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que vai dar muitas voltas e muito que falar.
Voltei a casa absorto em Augusta. Maquinalmente pus a rodar o Pavarotti e a sua “La donna è mobile” que, como uma epifania, logo me revelou o verdadeiro Ti Zé, velho tarado da hermenêutica: “… como pluma ao vento, muda de palavra e de pensamento!”
Nada do que dizia correspondia à verdade, divertia-se a confundir os basbaques, havia que dar-lhe um desconto e burilar nas entrelinhas. Se fosse um jogador de futebol, era aquele que baixa em vez de recuar, que sobe em vez de avançar, que verticaliza quando corre a direito — que mania têm os intelectuais de complicar a vida dos simples!
Espécie de Hugo ou Verdi a driblar os censores, baralhando as pistas e as provas, o Ti Zé arma-se no rei que se diverte como o último dos tolos reescrevendo a Maldição, esse repugnante sacrifício de inocentes apaixonados para gáudio dos poderosos amorais. A história maldita do mundo.
“Muda-lhe o nome e a história muda” — para onde estaria ele a desviar-me, a enviar-me?
E se a paixão de Gilda fosse mais assolapada que os amores pudibundos de Blanche; e se a giba de Rigoletto fosse mais boba que a corcunda de Triboulet? O que mudaria na história, que despojos baixariam, afinal, à campa rasa dos amantes desconhecidos? E de quem seria, então, o dedo no gatilho — de um mercenário sanguinário como Saltabadil e Sparafucile, ou de um velho namorado ressabiado como Johnny Farrell?
Revejo as pistas, não encontro o azimute para a Sachola Caiada nem para a Formentosa-a-Nova, mas surge-me o “Beijo das Almas” mal disfarçado no “Brejo das Almas”, uma evidente autópsia ao crime de morte por amor, entre aparentelados, na trova do menestrel Drummond de Andrade:
“Que grande coração possuía. Vísceras imensas, tripas sentimentais e um estômago cheio de poesia…”
Talvez não fosse um crime intencional, mas apenas o desfecho inevitável da frivolidade de mulher inconstante — desgraçado daquele que lhe entrega o coração indefeso.
“Amá-lo é como conduzir um carro sem travões”, confessava a Rita. “Odeio-a tanto que não consigo tirá-la da cabeça”, ameaçava o Glenn.
A nossa Gilda, essa Augusta, sagrada, imponente, excelsa, eterna Gaiata Formosa, que a todos manipulava e conduzia a seu bel-prazer, com o corpo que embalava o leito: “É sempre infeliz quem a ela se entrega.”
Estou no bom caminho, Ti Zé?
O AUTOR: João Querido Manha
Sessenta e cinco anos, xaral do Ninhou dado às do Pinto Lopes e à piação nos Moinhos da Fonte, galenos e figuronas no Casal Grande, videiro e mouquinho, ambrosiando em abobrar dentro de um planeta ancho. Gambiador de traquinas, xambéis e bruxos, soletras e alexandrinas, Mané Bica pelos cercos da Lica e pousios dos meiras do Pai da Vida, jordando gateiras e patentes, engenhos e ardenças, entrudos e didis.
Ou seja, do minderico para português:
Sessenta e cinco anos, minderico, jornalista e comentador em rádios e televisões de Lisboa, pai e avô, pensando na reforma daqui a um ano. Operador de máquinas de escrever, telefones e computadores, editando artigos e fotografias, viajante pelos estádios e aeroportos do mundo, contando golos e troféus, vitórias e derrotas, heróis e vilões.