Desejo não mais voltar

Sei que ela não deixou de me amar daquela forma defeituosa a que fui habituada a ser amada ao longo da vida ­­— se entendermos que amar pode assumir esta forma tortuosa.

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Conto P3: Desejo não mais voltar Fernando Favero/Pexels
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Quando decidi abandonar definitivamente a mulher que foi minha companheira por mais de vinte anos, percebi que era uma questão de sobrevivência. Já nada restava a que me pudesse agarrar e era-me impossível digerir as coisas terríveis que me fizera. Na realidade, o que acabou por ser a gota de água na nossa relação foi uma mentira pequena, quando comparada com os tantos embustes que me contou ao longo dos anos.

No momento em que acabou por confessar, horas depois e por imposição minha, que me tinha mentido, tive a certeza de ter perdido o pouco interesse que me restava por ela. Não sabia como iria fazê-lo, mas desta vez o corte seria definitivo. Esta pessoa causou-me desde sempre sentimentos contraditórios. Maltratava-me e enchia-me de compensações em seguida.

Desta última vez, depois do teatro e da mentira, apareceu em casa com um saco cheio de roupas bonitas e caras. Sabia que eu ia estar num evento profissional dali a uns dias, garantiu-me que queria que eu fosse bonita, que me sentisse bem. Desde que começou a viver comigo e com a minha filha, uma convivência que durou pouco mais de quatro anos, esmerou-se com mimos e presentes, sobretudo nos momentos em que a nossa relação dava sinais claros de deterioração, o que na realidade acontecia pelo menos uma vez por mês.

Arranjava sempre algo com que se enfurecer ou deprimir. Depois dessas crises voltava a ser a pessoa mais amorosa e bem-humorada. Tinha um sentido de humor apurado, era uma amante exímia e que me fez ter prazer como nunca ninguém antes. Era meiga, espirituosa, tinha várias qualidades que me baralhavam e que me faziam sempre ficar ali. Num lugar inseguro, muito semelhante à casa onde cresci com os meus pais.

A minha namorada tinha várias características semelhantes às da minha mãe, vejo-o hoje com clareza. Sobreviver à letargia que foi deixar de a ter na minha vida foi uma das tarefas mais difíceis que tive de enfrentar. Não sei ainda se estou a salvo, sou sincera.

Sei que ela anda por aí algures, na mesma cidade que eu, e que não deixou de me amar daquela forma defeituosa a que fui habituada a ser amada ao longo da vida ­­— se entendermos que amar pode ter de assumir esta forma tortuosa. Para já, embora solitária, encontrei a paz possível que me foi interditada durante os anos em que me relacionei com ela. Foram anos muito traumáticos. Desejo não mais voltar.

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