Wagner Schwartz: “O que fizeram com esta performance ajudou Bolsonaro a ser eleito, a dizer que a esquerda era um bando de degenerados”

Foi um dos artistas demonizados pela facção ultraconservadora e reaccionária do Brasil. Regressa a Portugal para lançar o seu novo livro e apresentar a performance-símbolo La Bête.

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Wagner Schwartz apresenta La Bête este sábado, no MAAT, em Lisboa Caroline Moraes
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Em 2017, no segundo ano do mandato presidencial de Michel Temer, antecessor de Jair Bolsonaro, os ultraconservadores do país começavam a sair da toca, com a cumplicidade e bênção do governo. Nas artes, uma das primeiras vítimas foi Wagner Schwartz (n. Rio de Janeiro, 1972).

Depois da apresentação da performance La Bête (O Bicho) na 35.ª edição do Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, o coreógrafo, performer e escritor foi alvo de uma campanha de linchamento devido à manipulação e descontextualização de um momento da peça, registado em vídeo, em que uma mulher e a sua filha pequena tocavam no corpo do artista – duas das muitas pessoas que o fizeram, num trabalho que se vivifica a partir da manipulação do corpo nu de Schwartz pelo público, inspirado nas esculturas dobradiças e interactivas da artista plástica brasileira Lygia Clark (1920-1988).

O criador foi transformado num “pedófilo” e num “monstro” por conservadores, evangélicos, grupos e políticos de extrema-direita. Foi demonizado na Internet, alvo de fake news. Recebeu 150 ameaças de morte, mas nunca recebeu protecção da Justiça. Este sábado à tarde, no MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa, Wagner Schwartz lança A Nudez da Cópia Imperfeita, o livro onde narra, entre o registo documental e ficcional, as sequelas destes ataques (a leitura do primeiro capítulo será feita pela actriz Maria de Medeiros). O artista mostra ainda La Bête – que já havia passado pelo Porto em 2020, numa versão apresentada no programa Volts, da CRL - Central Eléctrica – em diálogo com a exposição Da calma fez-se o vento, de Sandra Rocha, no MAAT até domingo.

O Ípsilon conversou com Wagner Schwartz num momento em que o brasileiro está “outra vez pronto” para enfrentar La Bête, uma performance que, admite, acabou por se tornar numa outra coisa: num símbolo da ascensão da extrema-direita no Brasil e da perseguição aos artistas, aceleradas depois pelo governo Bolsonaro. Agora, com Lula da Silva, num processo de reconciliação com o Brasil, Schwartz espera uma mudança real. “A irreal, eu não quero mais.”

Estreou La Bête em 2005. O que o levou a criar esta performance desta forma, com o seu corpo à mercê dos espectadores?
A Lygia Clark criou uma série de esculturas, Os Bichos, em 1960. Após a morte dela, esses Bichos ficaram fechados em cubos de vidro e apresentados em galerias dessa forma. Só que ela criou um objecto em que o conceito só se formaliza quando existe interacção com as pessoas; quando estas manipulam o objecto. Quando vi um dos Bichos preso dentro de um cubo de vidro, tentei imaginar a soltura dele. Decidi então tomar o lugar do bicho, virar o bicho em cena. Tirá-lo dessa forma estática para trazer um movimento dentro de uma forma ficcional. As oposições sujeito/objecto são rearticuladas quando eu me coloco no lugar de um objecto de arte.

Nas artes plásticas há a questão do objecto que não pode ser tocado. Os museus e as galerias têm uma série de protocolos que mantêm as pessoas afastadas das obras e isso também contribui para uma elitização da arte. Nas artes performativas não é bem assim, ainda que o corpo do performer seja normalmente colocado como algo que está acima, ou que é mais valioso, mais capaz, do que o do espectador. Pensou nestas dinâmicas quando concebeu La Bête?
Quando a Lygia criou essas esculturas, ela já tinha a ideia de criar um movimento contra esse elitismo. Um objecto de arte é, geralmente, blindado pelo eterno; ele não pode acabar. A Lygia Clark trouxe-lhe finitude. Uma vez que ela cria algo que vai ser manipulado, ela já prevê que essa coisa será quebrada, será estragada com o tempo, deixará de funcionar da mesma forma. E ela tinha vontade que esses Bichos não fossem vendidos por marchands de arte, mas que um dia estivessem sendo vendidos por camelôs [vendedores ambulantes], chegando a um nível de popularidade e de vulgaridade. A família não deixou, nem os museus e galeristas, com as leis museológicas. Hoje um dos Bichos custa um milhão e 500 mil dólares. A vontade dela era outra. Tanto que no final da vida, ela decidiu não ser mais artista. Disse que era terapeuta. Começou a trabalhar com objectos de plástico e de pedra para criar sessões de um para um, em que ela cuidava das pessoas.

Isso é interessante, porque esta performance tem também esse lado do cuidado com o outro.
Sim, é muito afectada pelos objectos relacionais da Lygia. É quando o objecto entra em relação com o corpo. N’Os Bichos as pessoas podem tocar, existe um encontro subjectivo, você dobra e desdobra sensações, ideias. Você fabula, de facto. Ao tocar um corpo humano, o subjectivo trabalha tanto quanto a subjectividade.

Acredita que a nudez, como é apresentada nesta performance – de forma vulnerável, desarmada –, permite conhecer o outro de uma forma mais directa e sem tantos filtros? Pode ser desconfortável ao início, mas depois parece permitir uma conexão mais profunda e empática.
Acredito que o início da performance é sempre um choque. Mesmo dentro de um museu, onde a nudez já é comum há muito tempo – a arte talvez tenha começado nua. Mas quando as pessoas entendem que o que está ali à frente é completamente inofensivo, que é uma nudez despregada de todos os valores morais que a gente aprende do lado de fora do museu, aí a coisa se torna muito simples e é possível se reaproximar desse estado de nudez do qual nos desconectámos. Porque nele não há ambivalências.

O modo como as pessoas reagem à performance tem mudado muito desde 2005?
Eu acho que os medos são ainda os mesmos. Houve um grande salto tecnológico desde então, mas a distância histórica não é assim tão grande. O grande medo é se colocar em relação ao outro. Esse é o medo do nosso século, e talvez do século passado. É muito complicado ainda olhar para o outro como ele é. É difícil olhar para um corpo desarmado.

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Protesto na Avenida Paulista em São Paulo, em Outubro de 2017, depois da performance de Wagner Schwartz no MAM Cris Faga/NurPhoto

O que sente normalmente da parte dos espectadores? Receio, ansiedade, curiosidade, empatia?
Tem tudo isso. Tem o receio, a curiosidade, a empatia, a antipatia. As pessoas que se propõem a entrar na sala começam a questionar-se sobre todos esses sentimentos que vão construindo a conexão com o que está acontecendo, e também o contrário, a desconexão. Tem pessoas que se conectam e continuam na sala, tem outras que se desconectam e vão embora.

Falou em antipatia: passou por situações desconfortáveis?
Sim. Por exemplo, teve uma apresentação em São Paulo em que um rapaz pegou o meu corpo e me rodou de um lado para o outro do palco. Não ficando feliz com isso, me tirou de cena, me pegou no colo e me levou para fora do teatro. Acabou com a performance em dez minutos. E aí eu não posso fazer nada, eu não posso voltar e continuar. Eu estou entregue ao público, ele é que decide. Teve uma outra pessoa que tirou o objecto de plástico e levou embora [em cena, Schwartz faz-se acompanhar de um objecto que emula uma escultura de Clark]. Foi muito bonito porque outra pessoa fez um origami de papel e colocou do meu lado para que a coisa continuasse.

A manipulação das imagens da performance e a circulação de fake news, que incluiu notícias de que se tinha suicidado, aconteceram durante o mandato de Temer, que podemos ver como um prólogo do Brasil de Bolsonaro. Em algum momento sentiu que reacções destas podiam suceder? Ou foi inesperado?
Foi inesperado. Essas pessoas nunca se interessaram pelo que existe dentro de um museu. No momento em que eu saí da minha performance no MAM e fui conversar com o programador, um jornalista perguntou-me se eu tinha vontade de mudar o mundo e a sociedade. Eu disse para ele que eu não sabia que a sociedade estava dentro do museu, porque devia ter lá umas 200 pessoas. São nichos. A gente quase sempre apresenta para pouquíssimas pessoas. E são especialistas, sabem o que acontece ali. A mãe da criança que me tocou no pé é uma coreógrafa, amiga minha [Elisabete Finger].

Eu não esperava que a performance fosse sair do museu. E, ao sair do museu, que ela causasse tanto alvoroço. Mas não foi a performance que causou, foi a manipulação de um momento. Aí eu entendi o quanto a arte pode ser perigosa. Depois a gente contextualiza isso tudo, como aconteceu e como chamaram o nosso trabalho de degenerado: eu digo nosso porque em 2017 houve uma caça às bruxas a vários artistas, como o Maikon K e a Renata Carvalho [que se apresenta esta sexta-feira e sábado no 23 Volts, no Porto, com Manifesto Transpofágico]. O meu trabalho estava sendo manipulado por pessoas que não são frequentadoras de museus e que não querem entender o que acontece ali dentro. Não é que elas não entendam: todo mundo pode entender, mas não querem.

La Bête acabou por se tornar noutra coisa: num símbolo da ascensão da extrema-direita no Brasil e das notícias falsas, e também da perseguição aos artistas que ganhou tracção com o governo Bolsonaro.
Sim. Ela também é uma das performances que serviu para eleger esse governo. [Bolsonaro] usou a imagem manipulada da performance para a campanha dele. O que fizeram com esta performance ajudou ele a ser eleito, a se opor à esquerda, a dizer que a esquerda era um bando de degenerados.

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Caroline Moraes

Que efeitos teve esta situação em si? Alguma vez pensou em desistir de La Bête?
Quando aconteceu isso, acabei saindo do Brasil para Paris, onde já tinha casa. É difícil falar de exílio quando você tem outro endereço, mas foi uma palavra que utilizei porque tinha muita raiva. E sim, pensei em desistir. Pensei, inclusive, em parar de trabalhar enquanto artista, porque o que foi mais traumático, além dos ataques, foi perceber que instituições de arte com quem eu trabalhava começaram a desprogramar-me. Perante todos esses ataques, quem se posicionou? Os primeiros a segurar minha mão foram museus, não foi o meio onde eu estava e onde eu comecei, o da dança contemporânea.

Eu acredito que hoje estou trocando de disciplina, porque o que me tem interessado muito ultimamente é a escrita. Sempre escrevi, da escrita é que surgiram os meus trabalhos. Não sei se tenho mais vontade de fazer uma performance para apresentar em festivais de dança contemporânea. Faço La Bête porque está pronta. E agora estou pronto também para a dançar de novo.

A sua mais recente performance é de 2019, A Boba. Foi estranho apresentar uma nova peça depois do que aconteceu?
Notei logo uma diferença no público. Quem foi ver e quem se ausentou. Para quem aquela performance disse alguma coisa e para quem ela não disse nada. Por exemplo, vários psicanalistas foram assistir [risos]. Amigas como Suely Rolnik e Maria Rita Kehl, que trabalham com arte e psicanálise e que acharam interessantíssimo. Artistas do cinema, jornalistas. Mas a dança contemporânea, os pares, pareciam que tinham visto uma assombração. Ali eu entendi que talvez eu já não estivesse mais conversando com o núcleo, mas com outros. Esse novo movimento me ajudou a escrever, a me conectar com organizações que protegem artistas em perigo. Foram essas organizações que vieram atrás de mim para falar sobre arte política.

Quais foram?
Associações como a PEN International, ICORN - International Cities of Refuge Network e a Open Society, que me deu bastante dinheiro num momento em que eu não tinha nada. Ajudaram-me com dinheiro para terminar o meu livro, que vai ser lançado agora em Lisboa. Hoje, quem me apoia é a Artists at Risk Connection, uma rede da PEN América.

Como surgiu este novo livro, A Nudez da Cópia Imperfeita?
Na época, em 2017, vivi um momento muito difícil. Além dos ataques, era a falta de futuro. Eu precisava fazer alguma coisa. Não conseguia dançar, porque estava muito machucado intimamente, então comecei a escrever. Mas a minha escrita não era uma escrita para o colectivo, era uma escrita para mim mesmo. Logo depois de apresentar A Boba, vim para a Europa sabendo que alguma coisa tinha mudado. E aí a ideia do livro ficou forte. Quando eu fui atrás dessas organizações que ajudam artistas em perigo, tive que criar um dossier muito grande contando todas as ameaças que eu recebi, porque precisava de provar o que estava acontecendo. O dossier tinha 30 páginas. Aí eu decidi começar a escrever. Isso foi no início de 2020. A escrita virou um exercício diário e o livro foi tomando forma. Ajudou-me nesse trânsito da dor para a palavra.

O que aconteceu em 2017 moldou a La Bête que apresenta hoje? Sente que o público tem demonstrações de carinho?
Isso aconteceu em 2018, quando apresentei no Palais de Tokyo [Paris]. Muitas pessoas abraçaram-me. Em 2020 decidi fazer de novo no Brasil e foi extraordinário. Tive essa sensação de que a performance retomou o lugar de onde ela nunca deveria ter saído. Então há um carinho, sim. Não é só mais uma performance; agora ela é o resultado de um monte de momentos, de rupturas, de relações que não são só do meio ou da ordem da performatividade. Existe hoje uma força política dentro dessa performance que não existia antes – e o político comove, envolve. Eu acredito que é nesse lugar que a performance hoje acontece.

Quer voltar ao Brasil com esta performance, agora num contexto político diferente?
Estou indo para lançar o livro. Agora a gente está vivendo um outro momento. É o Lula, as pessoas que estão trabalhando com ele são extremamente competentes e estão tentando fazer funcionar um país completamente incompetente. Acredito na competência desse governo, inclusive porque a gente pode criticá-lo e ele está nos escutando. Vou para o Brasil agora para falar sobre essa questão. Espero ser escutado, porque existem pessoas que estão no exílio e ainda não se sentem confortáveis e protegidas o suficiente para voltar para o Brasil. O governo muda, mas ainda existem mais ou menos 50 milhões de brasileiros que votaram no governo anterior e que pensam como ele.

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