Beatriz foi assediada e agora estuda como polícias e juízes lidam com crimes sexuais
Beatriz Castro Ribeiro encontrou na sua experiência pessoal inspiração para a investigação académica. “Fui bastantes vezes assediada, até por trabalhadores da PSP.”
Frequentava o 8.º ano. Numa viagem de metro, de repente, reparou que o homem sentado mesmo à sua frente não tirava os olhos dela e estava a masturbar-se. “Senti um enorme desconforto. Era demasiado nova para compreender o que estava a acontecer. Só passados vários anos percebi que aquilo tinha um nome e era um crime.”
O crime chama-se importunação sexual: “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”
Beatriz Castro Ribeiro não fez queixa. Nem naquela altura nem noutras em que se sentiu vítima. “Uma coisa é haver importunação sexual, outra é haver queixa, detenção, inquérito, julgamento, condenação. Há aqui um funil enorme, enorme.”
Só 13% dos inquéritos resultam em acusação. O Ministério Público conta 733 inquéritos instaurados em 2016, 870 em 2017, 903 em 2018, 958 em 2019, 941 em 2020. Quanto a acusações deduzidas, 74, 93, 122, 122, 103, respectivamente.
Um repto nas redes sociais
Já no ensino superior, Beatriz, que conta agora 26 anos, começou a falar sobre o assunto. “Todas as raparigas e mulheres com quem eu falava ficavam entusiasmadas. É uma coisa que está tão presente na nossa vida e sobre a qual falamos tão pouco...”
Falar ajudava-a. “Foi uma maneira de canalizar a minha raiva e a minha frustração. Fui bastantes vezes assediada, até por trabalhadores da PSP na rua, e isso parece-me um paradoxo gritante. Profissionais a quem tenho de recorrer para apresentar queixa podem ser as pessoas que me fazem sofrer assédio.”
Ao fazer mestrado em Ciências Políticas e Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa, várias perguntas ecoaram na sua cabeça. Que obstáculos se levantam contra a aplicação da lei que criminaliza o assédio sexual no espaço público? A PSP facilita ou dificulta a aplicação da lei?
Entre Abril e Maio de 2020, lançou um repto nas redes sociais Facebook e Instagram. Pediu que lhe enviassem exemplos de assédios sexual no espaço público, explicando que planeava dedicar-lhe a sua dissertação de mestrado e não revelaria as suas identidades. Recebeu 55 relatos, muitos a remeter para a adolescência.
Uma rapariga narrou um episódio na estrada. “Estava de bicicleta e passei por um carro da polícia que estava parado num semáforo e o polícia que ia a conduzir olhou para mim e, a rir, simulou sexo oral com a mão e a boca.” Outra conta um episódio numa paragem de autocarro. “Estava à espera com uma amiga e um grupo de rapazes passou por nós e um deles meteu a mão na minha vagina, riu-se e foi-se embora.” Outra um episódio no metro. “Quando comecei a gritar com ele porque o vi masturbar-se, foi aí que ele ficou mais excitado e se veio para cima de mim.”
Diferenças entre homens e mulheres
A bibliografia era escassa. Não tinha forma de obter uma amostra representativa. Entre Outubro de 2020 e Fevereiro de 2021, fez entrevistas semiestruturadas a 14 de um total de 20.337 elementos da PSP. Chamou a estes nove homens e a estas cinco mulheres “burocratas de rua”, na expressão do cientista político norte-americano Michael Lipsky.
Mais de metade dos entrevistados referiram dificuldades de aplicação da lei. Dois mencionaram a não-apresentação de queixa e sete os problemas de obtenção de prova. Cinco defenderam ser quase impossível identificar suspeitos, uma vez que o crime é fugaz, praticado por desconhecidos, no espaço público. Muitas vezes, “a única prova é a palavra da vítima”.
Beatriz assinalou diferença entre agentes homens e mulheres. Enquanto eles pareciam “não ter noção da dimensão do problema”, elas afirmavam ser “comum”. “O assédio existe tanto fora como dentro da instituição”, disse uma. “É um mundo de homens e tentam sempre, como é óbvio”, disse outra.
“As conversas começavam sempre no mesmo sítio”, resume a investigadora. “É claro que isso é desagradável. É claro que é inaceitável. É muito bom que seja crime.” Depois, a dúvida. “Temos de ter cuidado porque não sabemos se estão a dizer a verdade. Temos que ter cuidado porque nem sempre nos contam a história toda, podem omitir o que lhes der jeito.”
Foi entre os homens que observou propensão para não acreditar nas vítimas. “Às vezes não é nada e as pessoas, só para tentar denegrir a outra pessoa, podem prestar falsas declarações”, disse um. “Mas isso depois leva para outros lados, por exemplo, uma pessoa que queira fazer mal a alguém”, disse outro.
Entre as mulheres, notou tendência para duvidar da eficácia da lei. “Pode haver aquele sentimento de ‘vou ali e vou dizer que fui assediada. Na volta, ainda me dizem: Também você veste-se assim...’”, disse uma. “Não é considerado um crime a sério, não tem a importância devida”, disse outra. “Basicamente, vai ficar para ali, não há investigação.”
Concluiu na dissertação de mestrado, que deu origem a um artigo científico, que tais posturas podem ter efeito quer na apresentação da queixa por parte da vítima, quer na investigação que deve ser conduzida pelas forças de segurança. Por um lado, podem receber as vítimas “com cepticismo, descrença, insensibilidade”. Por outro, descurar a recolha de prova.
“Entendemos não nos pronunciar, porquanto dificilmente concebemos que uma instituição com a dimensão e responsabilidade da PSP possa ser (sumariamente) caracterizada por intermédio de 14 entrevistas”, reagiu o porta-voz da direcção nacional da PSP. “Reafirmamos o compromisso com todas as matérias que afectam a segurança das pessoas, actuando tanto a título preventivo como de contenção.”
No entender de Beatriz, “o facto de a amostra não ser representativa não significa que as suas conclusões sejam irrelevantes”. “Pelo contrário, constituem a primeira sinalização de um problema que, a verificar-se em larga escala, trará largas consequências para a implementação não só desta lei como de análogas.”
Mitos que ajudam a reproduzir o crime
Seguindo para doutoramento, na Universidade Nova de Lisboa, com co-orientador na Universidade de Edimburgo, decidiu continuar a investigar a possibilidade de trabalhadores do Estado poderem criar obstáculos à aplicação das leis sobre crimes sexuais. Passou a focar-se no crime de violação. E alargou o campo. Agora, o foco são polícias e magistrados (procuradores e juízes).
“Há bastantes paralelos”, refere. Os principais? “Culpar a vítima e não acreditar na palavra da vítima.” Chama-lhes mitos. Diz que sustentam “uma sociedade que não reconhece quem é o verdadeiro autor do problema” e que isso contribui para o reproduzir. “Se culparmos a vítima, nunca vamos verdadeiramente olhar para a raiz do problema.”