A alma da Gâmbia, em Setúbal, ainda é o Sado
Na Gâmbia, concelho de Setúbal, havia “fartura de tudo, até de miséria”. A Herdade de Gâmbia é o pulmão da terra, mas o estuário do Sado dá alma às memórias de galeões, saveiros, ostras e arrozais.
“Era um mundo completamente diferente.” Adelino Santos ainda o conheceu, mas para quem chega pela primeira a vez à Gâmbia, a última de três localidades que compõem esta freguesia de Setúbal, estuário do Sado adentro, já quase na Marateca, é difícil imaginar esta terra adormecida sob um calor abrasador a pulular de gente. “O nosso rio era navegável na baixa-mar quase em todo o lado.” Podiam as “praias” do estuário estar descobertas que vinham os galeões de sal “pelos canais acima” à mesma, aos dez e vinte de seguida, à vela desde Setúbal, para carregar de ouro branco os convés desde Praias do Sado a Alcácer do Sal.
“Os homens dos barcos tocavam os búzios para dar sinal aos marnoteiros”, recorda Adelino, com o olhar preso no horizonte e mãos em concha nos lábios. Parece que ainda os vê, embora os canais estejam tão assoreados que “nem hipótese”. Só os pequenos barcos de pesca chegam ali, e é preciso esperar pela maré alta. Manuel Natividade, sentado ao lado, começou “a trabalhar nas salinas com dez anos”, recorda. Na altura, o sal era carregado à canastra para os galeões e recebiam “ao moio”, o que “equivalia a uma tonelada, 18 canastras”.
Durante muitas décadas, o sal foi um dos principais pilares da economia. “O sal de Setúbal era muito famoso porque era um sal grosso, muito aplicado no bacalhau”, lembra Fernando Deodato, 76 anos, também antigo salineiro. Só na Gâmbia estima terem existido “mais de 20 salinas”. Actualmente, a maioria foi convertida para viveiros de peixe em aquacultura e já nenhuma produz sal – a última da freguesia encerrou em 2012, embora exista “intenção de voltar a abrir”, revela o presidente da junta de freguesia, Luís Custódio.
Sal, ostras e peixe “às carradas”
Era um trabalho braçal, duríssimo, “quase de escravo”, para o qual chegou a vir gente de Aveiro fazer a época. “Viviam dentro de cabanas feitas de junco”, recorda Fernando. Depois, a partir dos anos 1960/70, já o sal dava o último suspiro, surgiram os primeiros viveiros de ostras, ainda “semeadas” em bancos de areia. “Aquilo era tanto dinheiro”, volta ao relato Adelino, 76 anos, “marítimo toda a vida”, à excepção do “tempo da tropa” em que foi “de férias para África”. Atira assim, férias por guerra, porque desde os “nove ou dez anos” que passava as madrugadas dentro de um saveiro, “a vela e a remos”, com o pai, a largar as redes do arrastão, desde o Pontal do Cavalo à Caldeira de Tróia. Saíam às 21h e regressavam a Gâmbia já “praticamente com o dia a abrir”, recorda. “Remava a dormir.”
Com as ostras, “o que se ganhava numa maré, ganhava-se numa semana cá fora”, conta Fernando. “Os homens dos trabalhos dos arrozes chegaram a ficar sem pessoal”, acrescenta Adelino. “Chegaram ali a andar 300 ou mais pessoas, a Mourisca ainda era superior, no Pontal também se trabalhava nas ostras...” Nas zonas baixas e alagadiças, havia arroz desde o Zambujal até ao monte da Gâmbia e depois da zona do parque de campismo ao Vale dos Judeus. Vinha gente das Beiras, do Alentejo – e mais uma vez a visão dos barracões onde se amontoava gente de trabalho e crianças.
Por alturas de Agosto, o pai e o avô de Adelino “agarravam no pessoal todo, no cão, no gato, e no porco se tinham”, e mudavam-se para a ribeira da Marateca. Faziam umas cabanas com “juncos, freixos, salgueiros, caniço” e armavam as redes. “No outro dia, as nassas não podiam levar mais eirós (enguias)”, recorda. O que não vendiam ali nos arrozais e arredores seguia em viveiros nos saveiros, depois em cestos de vime às costas até ao comboio para o Barreiro, depois para o barco, e o que não tivesse morrido pelo caminho era vendido em Lisboa. “Peixes de todas as espécies, a gente escolhia o que queria”, recorda. “Havia fartura de tudo, até de miséria havia.”
Um nome que é uma herdade
Quando foi criada, em 1985, a freguesia de Gâmbia-Pontes-Alto da Guerra era “essencialmente rural”, com pouco mais de 3000 habitantes, distribuídos sobretudo pelas três povoações que dão corpo ao nome. Nos últimos 20 anos, sofreu “uma grande transformação”, com a construção de novos loteamentos mais perto da cidade de Setúbal, e a população mais do que duplicou. Mas nesta zona junto ao estuário do Sado e à foz da ribeira da Marateca, pouco ou nada terá mudado, ainda que a instalação da indústria nas margens do Sado e a introdução de herbicidas nos arrozais tenha “acabado com isso tudo” que se apanhava no estuário durante algumas décadas.
Gâmbia continua a ser “a parte mais rural” da freguesia, com casario disperso onde devem morar “cerca de 900 pessoas”, conta Luís Custódio. O abastecimento público de água canalizada e de saneamento básico só chegou no final da primeira década do milénio. E entre um pedaço da Estrada Principal e a Rua da Gâmbia concentra-se tudo o que é comércio aberto ao público: três cafés, duas mercearias, o clube desportivo, onde encontrámos Fernando, Manuel e Adelino, e o parque de campismo. Boa parte do território, para lá das moradias e hortas, pertence à Herdade de Gâmbia, na família de Francisco Borba desde 1917.
“A história da compra está ligada ao nome do meu avô”, conta o actual proprietário. “Quando nasceu, em 1875, era uma criança muito frágil, com uma viabilidade de vida muito precária, e a minha bisavó fez a promessa de que, se sobrevivesse, se chamaria Francisco de Paula.” Aos 27 anos, já formado, veio exercer medicina para Setúbal e acabaria por descobrir que na Quinta de Gâmbia existia uma capela cujo patrono era, precisamente, São Francisco de Paula. “O meu avô pôs pés ao caminho para poder comprar essa capela”, recorda, apontando o edifício à nossa frente.
Com “quase 600 hectares”, os terrenos da herdade vão-se insinuando ao longo da visita à Gâmbia, ocupando grande parte da localidade. As actividades económicas da quinta foram-se alterando ao longo dos anos, dividindo-se agora entre a floresta (pinheiro manso e sobreiro), vinha, criação de gado bovino, e a quinta pedagógica Lugar dos Pernilongos, projecto da filha Carlota, criado em 2016, onde se dá a conhecer os trabalhos rurais da quinta adaptados a actividades para crianças, sempre em contacto directo com a natureza e com uma componente artística. “Chegamos a receber 300 crianças aqui num dia”, aponta Carlota, entre visitas de escolas, instituições, festas de aniversário e eventos para famílias.
Riqueza de aves
Antes de chegarmos à Gâmbia, fizéramos um desvio pela estrada de areia a seguir ao Bairro da Bonita (à saída de Pontes) para visitar a “ilha da coroinha”, um pedaço de terra e pinheiros que nunca corta a ligação ao resto da freguesia e por isso nunca chega a ser ilha, ainda que o povo goste de chamar-lhe assim. É ali que chegam algumas das ostras criadas em sacos sobre o estuário, novamente produzida “em larga escala” na zona, dando “emprego a muita gente”. Mas o que nos traz aqui são as aves que se alimentam nas antigas salinas que, como rendas quadriculadas, ainda bordam grande parte da margem do Sado.
Habituadas ao vaivém de carros carregados de ostras, deixam-se ver bem de perto: bandos de flamingos, uma garça-real e uma garça-branca, pernilongos, gaivinas. “Para os amantes da fotografia, isto aqui chega a dar de cheio”, assegura Luís Custódio. A área pertence à Herdade de Gâmbia, mas é junto a outras marinhas, mais perto do casario da propriedade e da ribeira da Marateca, que foi criado o projecto de birdwatching da herdade, há cerca de 15 anos.
“Estando na rota migratória das aves que vêm do Norte da Europa para o Norte de África [e vice-versa], na Primavera e no Outono, e sendo o estuário do Sado e da ribeira da Marateca uma zona muito atractiva para as aves descansarem, temos uma riqueza faunística muito interessante e importante”, realça Francisco Borba. Os três observatórios foram instalados em zonas distintas, direccionados a diferentes espécies, e qualquer pessoa pode “vir observar as aves, contar os passarinhos, tirar fotografias”. A actividade é gratuita, mas com marcação prévia obrigatória (o passeio guiado pode ser feito a pedido, sujeito a pagamento e disponibilidade).
Ainda que a produção de uva seja tradicional na região — “essas pequenas fazendas ainda têm todas um bocadinho”, nota Francisco — a maioria era para consumo próprio ou vendida às adegas. “Até havia o dito de que vinha a balança.” Depois da vindima, que arranca agora, chegavam as carrinhas onde a uva era pesada, paga ao quilo e levada para ser transformada em vinho. Há quase 40 anos, no entanto, Francisco decidiu aumentar a produção da herdade, e em 2009 lançou a própria marca de vinhos, Herdade de Gâmbia, com 30 hectares e cinco referências (tinto, branco, rosé, reserva e Moscatel de Setúbal). Cada rótulo é uma homenagem a uma das aves mais emblemáticas que se avistam aqui, em ilustrações delicadas: pernilongo, flamingo, garça-real, águia-pesqueira e colhereiro.
Do pontal ao cais palafítico
Totalmente integrada na Reserva Natural do Estuário do Sado, continua a ser junto ao rio que se concentram os principais atractivos de Gâmbia. No Pontal de Musgos, a areia adicionada à minúscula enseada que aqui se forma não chega para chamá-la oficialmente de praia, até porque não são feitos testes à qualidade da água (“sempre quentinha” nesta altura do ano, garante-se ainda assim). No entanto, há quem não resista a trazer chapéu-de-sol e toalha “para apanhar um bocadinho de sol” e “quando as marés são vivas” e o Sado só começa lá bem ao fundo “chegam a juntar-se aqui mais de 100 ou 150 pessoas” na apanha de moluscos, conta Luís.
As duas zonas de merendas garantem piqueniques com vista para o rio durante todo o ano, mas não há tradição como a da Sexta-feira Santa, dia em que “as pessoas da região – do Poceirão, do Forninho, do Pinhal Novo, da chamada 'zona caramela'” –, têm o costume de vir até aqui. “Como antigamente ninguém comia carne na Sexta-feira Santa, vinham apanhar marisco, lambujinhas, ostras, caranguejos, lingueirão. É altura da apanha do choco também”, recorda o autarca.
Vale a pena percorrer a pé toda esta zona, caminhando desde o pontal, entre pinheiros e sobreiros de um lado, e antigas salinas do outro, atentos à natureza, atravessar um arruamento de vivendas, hortas e árvores de fruto, e virar para o porto de pesca de Gâmbia, construído em madeira sobre estacas no lodo do estuário, uma versão mais singela, mas também muito menos turística e conhecida, do cais palafítico da Carrasqueira. “Hoje estamos a viver num sítio maravilhoso”, comparava Fernando há pouco. “Os nossos pais, se calhar, nem acreditavam. A Gâmbia é hoje uma terra de luxo.”