“Sempre houve ondas de calor”: a questão é se se estão a tornar mais frequentes e intensas

Climatólogo português e investigadora da World Weather Attribution falam sobre o estudo da relação entre as alterações climáticas e os eventos extremos. A onda de calor de 2003 foi o ponto de partida.

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Onda de calor em Ronda, Espanha, a 11 de Agosto de 2023 JON NAZCA/Reuters
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Quando ouvimos falar em ondas de calor, facilmente as associamos às alterações climáticas. Mas o estudo desta relação — que, alertam os cientistas, não é totalmente causal — é relativamente recente e começou há cerca de 20 anos, com uma das ondas de calor mais intensas na Europa, que afectou fortemente Portugal continental, entre 29 de Julho e 14 de Agosto de 2003.

“Na altura, percebemos que essa onda de calor [de 2003] era muito diferente das outras anteriores”, começa por explicar ao PÚBLICO o climatólogo Ricardo Trigo, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Além de “prolongada no tempo”, esta onda de calor “teve uma magnitude impressionante”, afectando uma grande área da Europa ocidental, com “impactos na mortalidade na região”. Foi então que os cientistas começaram uma “procura incessante” de uma explicação para este fenómeno.

Sarah Kew, investigadora do Instituto Real de Meteorologia dos Países Baixos e membro da World Weather Attribution (WWA), recorda que os primeiros artigos influentes sobre a relação entre as ondas de calor as alterações climáticas “foram publicados por volta de 2003”. “Depois, tornou-se claro que era possível fazer estudos de atribuição [trabalhos que procuram encontrar provas de uma ligação entre dois fenómenos] nesse domínio.”

A investigadora destaca que, na altura, os fenómenos analisados ocorriam em regiões mais vastas. Ao longo das últimas duas décadas, “o sinal das alterações climáticas tornou-se mais forte e as técnicas desenvolveram-se, o que permitiu passar a estudar escalas de tempo e regiões mais pequenas”.

Ricardo Trigo acrescenta que vários grupos começaram a utilizar “metodologias bastante complexas” para estudar esta relação, nomeadamente “grupos com muitos recursos na Suíça, na Alemanha, na Inglaterra e em Paris. Em 2010, registou-se outra “superonda de calor na Rússia, mais intensa”, e os cientistas ficaram ainda mais intrigados com o assunto. “O meu grupo da Faculdade de Ciências publicou um artigo na revista Science pondo em perspectiva as ondas de calor de 2003 e 2010 nas centenas de anos anteriores para os quais temos dados. Percebemos que estavam completamente a fugir ao esquema não só das últimas décadas, mas também das últimas centenas de anos”, nota o climatólogo, acrescentando que “o problema é que, nos últimos 12 anos, têm sido umas atrás das outras”.

Como se calcula isto?

Mas como é que os cientistas calculam isto? Observação e modelos climáticos. Ricardo Trigo alerta para que “não se consegue dizer taxativamente que um determinado evento foi causado pelas alterações climáticas antropogénicas”, ou seja, causadas pela actividade humana.

O que os cientistas fazem é utilizar “modelos que tentam reproduzir o clima ao longo de 30, 40 ou 50 anos”, fazendo simulações tendo em consideração os “gases com efeito de estufa tal como eles foram sendo enviados para a atmosfera” e outras simulações “sem considerar os gases com efeito de estufa antropogénicos e mantendo o nível de há cerca de 60 anos”. “Quando se compara a probabilidade de ondas de calor muito intensas [entre as duas simulações], a diferença já no tempo actual é brutal”, afirma o climatólogo.

A investigadora da WWA destaca, por sua vez, que a equipa da qual faz parte “analisa o domínio espacial e temporal” de determinado evento e tenta “seleccionar um parâmetro que se relacione sobretudo com os impactos” nas pessoas. Com o calor, diz Sarah Kew, “é bastante simples ver que existe, de facto, uma relação” com as alterações climáticas — embora, saliente, haja sempre alguma “incerteza” nestes estudos.

“Analisamos os registos meteorológicos na área e tentamos ver uma tendência nas próprias observações. Depois, analisamos as simulações de modelos climáticos para tentar explicar essa tendência através das alterações climáticas”, nota a cientista.

Ricardo Trigo e a sua equipa utilizam outro método. “Estas ondas de calor surgem sempre associadas a uma situação atmosférica muito específica. É impossível ter ondas de calor quando o ar está a vir do Norte, que é mais frio. Elas correspondem sempre, no Verão, na Península Ibérica, a ar que vem do Norte de África”, começa por explicar. Além disso, “em altitude, o ar, quando vem de cima para baixo, comprime-se e aquece mais”, o que normalmente acontece em “dias em que o céu está claro e há muito mais radiação solar que pode penetrar porque não há nuvens”.

Os climatólogos fazem, então, a selecção desses “dias muito quentes”, observam a “circulação do ar” e depois vão analisar “todos os dias” dos 30 anos antes e depois dessa altura com condições e influências semelhantes — ao que chamam “dias análogos”. “Vê-se que todos os dias caracterizados por esse transporte de ar e essa situação de céu limpo e combustão de ar são mais quentes do que os outros dias [em que essas condições não se verificam], mas que nas últimas décadas são mais quentes do que nas décadas anteriores”, salienta, notando que “essa diferença entre o que se passava antes e depois traduz a componente antropogénica”. Ou seja, nos anos 1950/60 já “havia situações em que o ar vindo do Norte de África ajudava a provocar as ondas de calor na altura, mas as configurações semelhantes que existem nos últimos 30 anos são sempre mais quentes”.

Ondas de calor “existiriam sempre”

Ricardo Trigo frisa que a questão a levantar é a seguinte: “O aumento da frequência, da magnitude e da expansão espacial das ondas de calor que estamos a ver em Portugal, na Europa e no mundo está relacionado com as alterações climáticas?” A resposta é simples: sim. As ondas de calor, assevera o climatólogo, “existiriam sempre” (mesmo sem as alterações climáticas). “Mas não seriam tão intensas nem espacialmente distendidas e não surgiriam com tanta frequência.”

Dá um exemplo: no ano passado, Londres atingiu os 40 graus. Embora não se possa dizer que “seria totalmente impossível” Londres chegar aos 40 graus Celsius sem alterações climáticas, diz Ricardo Trigo, “era preciso esperar milhares de anos para que no clima anterior, pré-alterações climáticas, se atingisse um valor desses”. “Provavelmente teríamos de esperar 5000 anos e, a seu tempo, por uma conjugação total de factores, haveria um dia em que se chegaria aos 40 graus em Londres. O problema é que se atingiu 40 graus no ano passado e qualquer climatologista diz que nos próximos dez anos se vai atingir outra vez”, alerta.

“Sempre houve ondas de calor e sempre haverá ondas de calor porque a onda de calor é definida como a flutuação da temperatura acima do clima normal durante alguns dias ou semanas”, concorda Sarah Kew. A questão é precisamente saber se se estão a tornar mais frequentes e intensas. Porém, adverte, “nalguns casos o fenómeno é de uma magnitude tão extrema que seria praticamente impossível obter a mesma intensidade sem as alterações climáticas” — nesses casos, podemos inferir que há efectivamente uma relação causal e “dizer que uma onda de calor daquela intensidade foi causada pelas alterações climáticas”.

Outros fenómenos associados

A investigadora da WWA destaca que as ondas de calor são os eventos extremos mais facilmente associáveis às alterações climáticas, por estarem relacionadas com a “ligação entre o aquecimento da Terra e os fenómenos de calor em microáreas”. Porém, assegura, “a seca está também frequentemente associada a ondas de calor”.

Ricardo Trigo concorda: “A seca amplifica sempre este processo de temperaturas mais elevadas.” O investigador salienta ainda que o que acontece na zona do Mediterrâneo, onde Portugal se insere, é que “a temperatura média está a subir, há um bocadinho menos de precipitação na Península Ibérica” e registam-se “muito mais secas agora do que há 40 ou 50 anos”. A água no solo é “fundamental para aligeirar ou não as ondas de calor e isso foi descoberto também a seguir a 2003”, afirma. São “dramas”, diz, que “andam de mão dada”.

À seca junta-se uma temperatura do Mediterrâneo elevada. São os chamados “efeitos de feedback”: “As temperaturas não andam a subir só por si, mas andam a subir por efeitos que depois se retroalimentam”, destaca Ricardo Trigo.

O professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa alerta para que, antes de se registar o Verão mais quente de sempre na Europa, em 2022, e o Abril mais quente na Península Ibérica, em 2023, “se verificaram os dois factores de amplificação em cima dos processos antropogénicos, ou seja, um solo muito seco e a temperatura do Mediterrâneo espectacularmente elevada”, factores que “ajudam a amplificar o aparecimento destas ondas de calor”.

As ondas de calor e o registo de temperaturas médias recorde são “coisas distintas”, alerta Ricardo Trigo. “Uma coisa são ondas de calor que demoram uma, duas ou três semanas e que afectam a Península Ibérica, o Reino Unido ou parte da Europa. Outra coisa é o Verão todo ser o mais quente.” No entanto, refere, verifica-se que, com cada vez mais frequência, “os Verões que têm muitas ondas de calor cada vez mais abrangentes e intensas são também, quando se olha para trás, os Verões mais quentes” como um todo.

Sarah Kew acredita que a onda de calor de Abril de 2023 registada em Portugal foi “um acontecimento muito extremo” e “algo sem precedentes”, com uma “clara ligação às alterações climáticas”, tal como concluiu um relatório publicado, pouco tempo depois, pela WWA. Os chamados estudos de atribuição que a WWA produz são feitos muito rapidamente para que “os meios de comunicação social e os decisores possam obter respostas baseadas em factos científicos e não em suposições científicas”, nota a especialista.

Mas estes estudos podem também prever o futuro. “Se estivermos a olhar para um cenário de mais dois graus [da temperatura média global acima da era pré-industrial] — o que está apenas a 0,8 graus de distância —, então penso que podemos ter a certeza de que as tendências vão continuar”, alerta Sarah Kew.

Apesar de salientar que o futuro é incerto e que se pode verificar uma inversão dos acontecimentos, Ricardo Trigo remonta a 2003 para falar sobre o que os modelos, à data, já previam: “Estamos perfeitamente em linha com aquilo que os modelos há 20 anos já indicavam que iria acontecer.”

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