Com a crise climática, esperam-nos muitas mais megaondas de calor
As alterações climáticas já provocaram ondas de calor que de outra forma não teriam ocorrido. E é de se prever, com a subida das temperaturas, que venham a acontecer fenómenos cada vez mais intensos. Di-lo o geofísico Ricardo Trigo.
No Verão de 2003, a Europa foi assolada por uma onda de calor muito severa. Foram, entre o fim de Julho e a primeira metade de Agosto, mais de duas semanas seguidas de dias e noites extraordinariamente quentes. Só em França, as condições meteorológicas perigosamente invulgares vitimaram quase 15 mil pessoas, na sua maioria idosas. Em Portugal continental, bateram-se recordes de temperatura (47,4 graus Celsius na freguesia de Amareleja, por exemplo) e houve incêndios em 15 dos 18 distritos. Até então, o pior ano em termos de fogos desde 1980 — ano a partir do qual começaram a existir registos organizados e sistemáticos relativos a incêndios — havia sido 1991, quando a área ardida atingiu os 180 mil hectares de floresta. Entre os dias 27 de Julho e 15 de Agosto de 2003, arderam cerca de 300 mil hectares.
“Há 50 anos, a probabilidade de vermos uma onda de calor tão severa como a de 2003 era praticamente nula. Mas ela aconteceu e já tivemos outras desde então”, diz ao PÚBLICO o geofísico Ricardo Trigo, professor de climatologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). O especialista lembra que os cientistas são muito cautelosos no que toca a atribuir fenómenos meteorológicos específicos ao papel das alterações climáticas, mas sustenta que, no que diz respeito às ondas de calor, começa a ser impossível não estabelecer uma relação causa-efeito. O aumento global da temperatura está a fazer com que ocorram, com relativa regularidade, ondas anormalmente intensas, muitas das quais “provavelmente não aconteceriam” se as nossas emissões de gases com efeito de estufa (GEE) não estivessem “descontroladas”, entende Ricardo Trigo.
Recentemente, o português co-assinou um estudo que foi publicado na revista científica Communications Earth & Environment e versa sobre uma onda de calor histórica na Península Antárctica. A 6 de Fevereiro de 2020, o primeiro de seis dias da onda, foi batido um recorde de temperatura nesse território: os termómetros deram conta de 18,3 graus Celsius negativos. “Naquela altura do ano, a temperatura normal na Península Antárctica seria de 60 graus negativos. Estamos a falar de um desvio de 40 graus”, frisa o investigador.
“Começamos a ter meses antes do tempo”
Ricardo Trigo também é co-autor de um gráfico de barras que é famoso entre a comunidade científica. Foi elaborado pela primeira vez no início da década passada, a propósito de um relatório sobre uma intensa onda de calor ocorrida em 2010, e vem a ser actualizado desde então. O gráfico é composto por várias linhas azuis e alaranjadas. Cada linha representa um ano. As azuis remetem para anos em que as temperaturas de Verão na Europa estiveram abaixo das previsões, ao passo que as laranjas remetem para anos em que tais previsões foram ultrapassadas. Não é surpreendente a informação que, na sua versão actualizada, o gráfico providencia: estamos a viver cada vez mais Verões anormalmente quentes.
Ricardo Trigo diz que Portugal teve de se debater com ondas de calor fortes em cada um dos seguintes anos: 2003, 2005, 2010 e 2017. O ano de 2017, lembre-se, foi o dos incêndios de Pedrógão Grande. O professor de climatologia refere ter co-assinado um estudo em que é demonstrado que “a semana dos incêndios de Pedrógão foi, na Península Ibérica, a mais quente dos últimos 70 anos no mês de Junho”. “Foi, em termos de temperaturas, uma semana idêntica às semanas bastante quentes que costumamos ter em Julho e Agosto. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que começamos a ter meses antes do tempo”, afirma o geofísico.
O especialista também faz o reparo de que 2022 já compõe, com 2005, 2012 e 2017, um lote infeliz: o lote dos (até ver) quatro únicos anos em que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) classificou todo o território português como estando em situação de seca severa ou extrema, que são as duas classes mais graves na monitorização do IPMA (há mais duas: seca fraca e seca moderada). “Muitas vezes, ocorrem no Verão ondas de calor que sucedem a episódios de seca prolongada na Primavera”, alerta Ricardo Trigo, dizendo ainda que a essa “ameaça dupla” tendem a juntar-se os incêndios florestais. “Estamos, na FCUL, muito atentos aos impactos desses chamados ‘extremos combinados’, que são uma coisa que assusta muito o Mediterrâneo”, refere.
“Não há soluções ao virar da esquina”
O geofísico diz que o futuro é muito pouco animador: infelizmente, é de se prever que venham a ocorrer com mais frequência ondas muito fortes, ou “megaondas”, termo que Ricardo Trigo e outros especialistas utilizam para distinguir fenómenos ondas de calor anómalas, que, “mesmo sem as alterações climáticas, aconteceriam normalmente” (e que a Organização Meteorológica Mundial define como períodos em que a temperatura máxima diária é superior em cinco graus Celsius ao valor médio no período de referência durante, pelo menos, seis dias consecutivos).
Portugal e a Europa já tiveram megaondas no início do século XXI — como a de 2003, que durou mais de uma quinzena — e, de acordo com Ricardo Trigo, “só com um acto de magia” não terão mais no futuro. “As temperaturas continuam a aumentar e não há soluções ao virar da esquina”, comenta o investigador, sublinhando que, devido à sua inércia, “as moléculas de dióxido de carbono e metano ficam muitas décadas na atmosfera”, pelo que baixar a concentração de GEE é muito difícil.
Segundo um relatório divulgado em Fevereiro pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), é no Sul da Europa que as secas e ondas de calor poderão vir a ter maior expressão, dado que esta região já apresenta temperaturas mais altas do que o Norte do continente. Dito isto, Ricardo Trigo considera “assustador” o que está a acontecer no arquipélago norueguês de Svalbard, “o sítio com a população mais a Norte do mundo”. Segundo um relatório de 2019, as temperaturas médias anuais aumentaram quatro graus Celsius desde 1970 nesse território. “É assustador. É como se de repente o Verão passasse a ser na Primavera”, ilustra Ricardo Trigo.